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Livros para adiar o fim do mundo

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Livros para adiar o fim do mundo

06
Out24

#42/2024 - O amante do vulcão, Susan Sontag: uma erupação lentamente efusiva

livrosparaadiarofimdomundo

O Amante do Vulcão

Quetzal

477 páginas

Tem sido isto, ler mais, muito mais do que escrever... o que vai esvaziando o sonho. Perante tanta obra prima, que lugar haverá para o que eu possa dizer?

Foi o primeiro livro que li desta autora, malhas da Hora H da Feira do Livro, em que há livros a quem damos oportunidade que, pelo preço, talvez não dêssemos. Graças aos deuses da descoberta. Se foi o primeiro... não vai ser o último, decerto.

O amante do vulcão é Sir William Hamilton, diplomata inglês em Nápoles, durante o período da ascensão de Napoleão. O período histórico é o contexto, as circunstâncias, nas quais as personagens se vão movimentar, elas sim protagonistas. O tema do livro não é a história, o tema do livros são as pessoas que viveram a história. Hamilton, para além de diplomata, é um colecionador, um vulcanólogo, vivendo sob o fascínio que o Vesúvio exerce sobre ele, na sua violência e imprevisibilidade. Aliás, o Vesúvio é leitmotiv  no livro, muitas vezes metáfora de metáforas. Apresentado assim, o livro até pode parecer maçador, mas a esta linha narrativa, dois aspetos se juntam que fazem com que, o ponto de partida, corresponda  a uma espécie de erupção.

A história de Hamilton poderia ser a de mais um diplomata, burocrata, interessado em arqueologia, como tantos outros, levando para Inglaterra inúmeros artefactos, como tantos outros, aproveitando-se ou não da ignorância dos locais. Mas este homem terá ficado para sempre ligado ao triângulo amoroso de que fez parte com a sua segunda esposa, Emma Hamilton, e Lord Nelson, o temerário herói inglês, vencedor de Trafalgar. Emma terá sido uma mulher fascinante na sua época, pela sua beleza e pelo seu talento, nomeadamente para recriar quadros vivos, representando muitas das heroínas históricas e mitológicas, musa inspiradora de muitos artistas. Por ela círam de amores William Hamiltonm, que com ela casou, depois de esta ter sido amante do sobrinho, causando grande escândalo na sociedade da época, mas também o herói inglês, Lord Nelson. 

Embora esta história, tantas vezes repetida em diferentes momentos da história: homem mais velho casa com mulher muito mais jovem, homem  mais velho é enganado pela esposa, para além do interesse despertado por se tratarem de personagens históricas, ganha contornos muito próprios por causa da voz narrativa, que não se coíbe de intervir, de comentar, de estabelecer paralelismos entre o passado e o presente, perspetivando diferentes momentos históricos.

A narrativa é a verdeira pérola deste livro, esta escrita intencional que Sontag assume de pleno direito, comentando, observando, refletindo, desvendado, levantando hipóteses, contaminando com o seu feminismo inteligente a forma como conta a história. Dessa forma, o livro vai-se renovando a si mesmo, até culminar nos últimos capítulos em que esta voz demiúrgica cede o lugar à voz e fala das suas personagens...

Talvez tenha dito demais, talvez haja aqui algum spoiler, mas não se preocupem o livro tem tanto para dar, ainda há margem para surpresas... procurem a mulher portuguesa, ela também merecedora de ser personagem de um romance; a voz de Emma, a voz de Hamilton. Esta obra já está ali num lugar especial da estante e do meu coração de livros.

18
Set24

#35/2020 - Tomás Nevinson, Javier Marías: caleidoscópio do bem e do mal.

livrosparaadiarofimdomundo

Tomás Nevinson

Alfaguara

656 páginas

Foi agosto outra vez e repeti um livro de Javier Marías, desta vez, Tomás Nevinson, que dialoga com Berta Isla, que foi o meu agosto de 2023. Desta forma, Javier Marías vai-se consolidando como escritor de culto. Só por causa das coisas, logo de seguida li Coração Tão branco, mas vamos com calma que não foi desse que vim aqui falar.

Comecemos pela minha introdução à obra de Marías. O primeiro livro dele que me veio parar às mãos foi Enamoramentos, que me enfadou, de maneiras que não terminei a leitura. Senti uma espécie de Marías exclusão, pois era um escritor que via sempre muito bem cotado e a mim nada... Depois li Berta Isla e fiquei cheia de vontade de ler Tomás Nevinson,  e agora eis-me aqui rendida a este escritor: complexo, intrigante, profundo, inquiridor.

Tomás Nevinson é o marido de Berta Isla, que entra para os serviços secretos britânicos por circunstâncias estranhas. Dada a sua profissão, ele é e não é, está e não está, existe e não existe, faz e não faz, como tão bem o define o seu chefe Bertram Truppa. Em Berta Isla, Tomás é quase personagem secundária, como se o escritor mimetizasse no romance o secretismo da sua profissão. O leitor sabe o que Tomás faz, mas isso é traçado a pinceladas vastas e genéricas, nunca uma missão sua é devassada, só a sua intermitência na vida de Berta. O que é trazido à luz é o impacto dessa intermitência na vida de Berta, essa descontinuidade que a desagrega e a vai indefinindo na sua condição de mulher de Tomás.

Neste volume, Tomás é o protagonista, é Berta que é deixada na sombra. Regressado à ação, mais uma vez devido a Bertram Truppa, Tomás aceita uma missão, que lhe devolve algum sentido à existência. No entanto, o início do livro é decisivo para a tese que se vem a enunciar: havendo a possibilidade de se ter assassinado Hitler e, dessa forma, impedindo todo o mal que conhecemos, esse ato é legítimo ou ilegítmo, ou como conclui uma das personagens, estando o nosso destino traçado há alguma forma de lhe escaparmos? Esta questão, podemos decidir quem vive e quem morre e em nome de que valores, estrutura toda a narrativa. Tomás terá de decidir para levar a bom porto essa missão, ter esse poder enorme, legitimado até, sobre se uma mulher pode viver ou se deve morrer. 

Para além desta equação que estrutura a história, a qualidade do livro está definitivamente na escrita. Marías é um escritor-leitor, percebemos que muita da sua cultura e erudição são matérias primas que cimentam a escrita. Todo o livro é diálogo, exegese, questionamento sobre a ambiguidade em que nos movemos, quem está do lado do bem e do lado do mal, quem tem legitimidade e quem não a tem, sendo os serviços secretos, ao serviço de quem efetivamente estão, e se em lugar de serviços secretos a bem de todos, forem, antes, interesses secretos, a bem de gente obscura? Essa nota de ambiguidade mantém-se em múltiplos aspetos do livro, até na cidade do Noroeste de Espanha, recôndita, provinciana, para a qual Nevinson se muda, e que nos interrogamos continuamente acerca da sua localização, será Ourense, será Lugo, será outra qualquer, ou um pouco de todas elas. 

Enfim, será difícil despertar o interesse para a leitura, quando se escrevem textos longos, de maneiras que me fico por aqui, talvez incompleta, talvez ambígua, mas rendida a Javier Marías, que se vai agigantando nos meus gostos de leitura. Vale a pena ler.

 

04
Jul24

#11/2024 - Apneia, Tânia Ganho:

livrosparaadiarofimdomundo

Apneia

Casa das Letras

690 páginas

Às vezes, apetece-nos mergulhar num livro de cabeça, abandonarmo-nos a ele e deixar que essa leitura nos absorva, enquanto durar. Foi nesse estado de espírito que peguei neste livro. Recomendadíssimo por uma amiga, que partilha comigo muitas leituras e um gosto muito semelhante, sabia, à partida, que não me iria desiludir. O livro é extenso e prometia boas horas de leitura. Hoje, à distância de uma semana, penso nessa amiga, a entrar no gabinete e a dizer-me "tens de ler este livro." Ela sabia o que estava a dizer.

Não resistindo a um trocadilho fácil, diria que lemos este livro em apneia, tal a intensidade das suas páginas. É quase uma armadilha, o leitor chega ali, desprevenido, lê dois ou três capítulos (os capítulos são curtos) e é, literalmente, fisgado e arrastado para a narrativa. 

O livro conta a história de Adriana que abandona o marido Alessandro, levando consigo o filho de cinco anos e é partir dessa decisão que a narrativa ganha fôlego. Em minha opinião, todo o livro evidencia uma enorme inteligência na sua composição, a estrutura mimetiza a mensagem. As primeiras páginas são ainda evasivas, incertas, ainda não conhecemos Adriana, aquele casamento parece ter alguns porblemas, alguma instabilidade, mas pouco percetível, porque a verdade é que os danos são subtilmente inflingidos, de maneira insidiosa, minando a integridade psicológica de Adriana. É ao longo da leitura que nos é revelado o alcance do mal. Alessandro é metódicamente cruel, meticuloso no mal que exerce e Adriana é remetida à metáfora da rã mergulhada na água que vai aquecendo até a aniquilar, porque a habituação a impede de reagir aos sinais de alarme. É este o tipo de violência de que Adriana é objeto. Outro aspeto a sublinhar é, pegando num conceito da teoria literária, o facto de Adriana ser verdadeiramente uma personagem modelada, que se transforma e se transfigura num processo que começa no instante em que abandona o seu casamento. Há uma trajetória demorada que leva a personagem de uma espécie de passividade e apatia à mulher que bate o pé, diz não, enfrenta e confronta, recorre a todos os meios para se salvar a si e ao filho do polvo maldoso que são as ações despudoradas do seu agressor, porque, sem levantar um dedo, o marido é um predador, um manipulador, uma aranha que tece a teia onde os incautos se deixam enredar. O ritmo da narrativa é, por isso, muito mais rápido no final do livro, precipitando os acontecimentos. A construção das três personagens, pai, mãe e filho, é uma das chaves da qualidade deste livro, são todos inesquecíveis. O embate de Adriana com uma justiça lenta, enviesada por narrativas contraditórias, quase preguiçosa, negligente ou excessivamente cautelosa, revela uma dimensão escondida de todas as questões ligadas à violência doméstica e às situações de todo e qualquer abuso, terreno minado onde ninguém parece querer aventurar-se, arriscar, procurar a verdade. A extensão do livro espelha estes meandros de lentos avanços e demasiados recusos, de profunda impotência, solidão e revolta das vítimas, condenadas inexoravalmente à dúvida, à descrença, a rótulos que comprometem a fiabilidade das suas narrativas. É kafkiano! Adriana e o filho são fustigados por uma inércia que parece favorecer sempre o agressor. 

Dizia a minha amiga: "É um livro que nos persegue", eu digo que nos assombra, mas criamos uma tal empatia com Adriana e o filho, prendemos a respiração juntamente com eles e corremos pelas páginas na esperança de que ambos encontrem uma saída da teia malevolamente tecida à volta deles, ansiando para que se libertem, venham ao de cima, inspirem finalmente o ar de que precisam e consigam, enfim, deixar de viver em apneia.

Que leitura!  que difícil que é fazer-lhe justiça. 

Não deixem escapar este livro, é poderoso, impregna-se em nós e obceca-nos. Adoro este efeito de um livro em mim. Que experiência de leitura.

27
Jun24

#10/2024 - A voz das Mulheres, Miriam Toews: ethos e logos.

livrosparaadiarofimdomundo

 

Alfaguara

240 páginas

Mais uma vez a Alfaguara continua a ser a editora que melhores horas de leitura me tem proporcionado...

A primeira vez que vi este livro, nem sequer li a sinopse. É verdade, parecia-me que, pelo título, não seria bem um livro para mim. Vai daí, mantém-se a veracidade da sabedoria popular: quem desdenha quer comprar... Na Feira do livro de Lisboa, a minha filha falou-me nesta obra, referindo que as críticas eram boas, concedi ler a sinopse e ainda não foi aí que ele me interpelou. Mas uma mãe tem tendência a fazer a vontade à filha e o livro veio para casa. Foi o primeiro que li no (abundante) rescaldo da feira do livro... que pena seria se não lesse este livro! Comecemos, por isso, pelo fim, é, das leituras deste ano, a que recomendo com mais veemência. A dizer a verdade, este ano tenho muito para recomendar!

A voz das mulheres parte de um episódio verídico. Numa remota comunidade menonita, algumas mulheres são vítimas de violência sexual, que os homens começam por atribuir a demónios e ao castigo pelos seus pecados. No entanto, a verdade revelada é bem atroz. As mulheres tinham sido sedadas por alguns homens da comunidade para as violarem repetidamente. Dito assim, a questão que se coloca é para quê ler este livro? Mas é que o livro não se debruça sobre a narrativa dessas atrocidades, antes sobre a forma como estas mulheres tentarão superá-las e sobreviver-lhes, resgatando a sua vontade e, pelo caminho, a sua dignidade, grandeza e coragem. 

A narrativa concentra-se - quase à maneira das tragédias clássicas pela concentração espácio-temporal - em duas sessões secretas que as mulheres levam a cabo para discutirem o que fazer sobre o que lhes aconteceu. A tessitura dessas conversas é que torna o livro interessante. Há páginas inesquecíveis neste volume. As mulheres discutem a sua condição, o perdão, a existência de Deus, a maneira como se posicionam face aos imperativos da comunidade a que pertencem, dividem-se entre a sua identidade e a sua dignidade. São seres apenas de palavras, são o seu prórpio discurso e é pelo discurso que crescem, superam as grilhetas que as oprimem, revelando-se seres heróicos, dotados de uma improvável capacidade de amar. Enfim, estas são das páginas mais belas que já li em livro. 

O que me parece extraordinário é a forma subtil como o horror vivido por estas mulheres é revelado ao longo do livro, sem sensacionalismo, mas com crueza, nunca em quantidade, são pouquíssimas as revelações feitas, mas irrompem com uma força que nos dilacera e abala inexoravelmente. Diria que a autora, mais do que uma contadora de histórias, é uma fazedora de histórias, no sentido em que as tece, que as urde, palavra a palavra, revelando tudo, sem o dizer diretamente. É a arte de dizer, é ser pela palavra, porque é através do silêncio que se anula o outro, é quando não o validamos, quando não o reconhecemos que lhe roubamos tudo, a identidade, a dignidade, a existência. O facto de as mulheres terem recuperado a sua voz é que lhes permite libertarem-se do jugo, da violência. Por isso este livro, mais do que ação, é manifesto como potenciador da ação, da coragem, da descoberta pasmada de que as mulheres podem tomar o seu destino nas mãos.

Talvez nenhuma destas palavras faça verdadeira justiça a este romance extraordinário, mas não desdenhem, mercemos este livro!

23
Jun24

“Sempre imaginei o paraíso como uma espécie de biblioteca.”*

livrosparaadiarofimdomundo

“Sempre imaginei o paraíso como uma espécie de biblioteca.”*

Esta frase de Borges aquilata, sem margem para dúvidas, a relevância da biblioteca e, claro, da biblioteca escolar, como espaço de informação, de aprendizagem, de conhecimento - numa perspectiva mais funcional - mas, igualmente, de prazer, de bem-estar de apaziguamento, de desconexão, de crescimento e de tranquilidade – numa perspectiva mais simbólica. Todas estas formas de viver e de fruir a biblioteca se ajustam à escola e à missão da escola junto da comunidade que a orbita.

Quem ama os livros e a leitura – é crucial que a palavra amor seja aqui declinada – ama igualmente as palavras e quer conhecê-las. Biblioteca é uma palavra composta de dois vocábulos gregos: biblion (livro) e teke (caixa ou depósito). No caso vertente, a etimologia desilude, como se uma biblioteca pudesse ser apenas uma depósito, ou uma caixa de livros, que remete para a ideia de arrumos de coisas inertes! Para mim, palavras (e os conceitos que elas arrastam), como lugar; livre acesso; paisagem; refúgio; vozes; espíritos; cultura; diálogo; viagem; empatia; mito; tempo; memória; mistério; claridade… sempre fizeram parte do campo semântico da biblioteca. Estas que escolhi traçam em breves apontamentos a convergência do meu ideário com o de Borges. Um lugar onde seja possível ter, sentir e fazer o que estas palavras prefiguram é, se não um paraíso, um lugar ideal, que existe e existe na escola.

Como lugar de livre – digam a palavra como quem a saboreia – acesso, a biblioteca é democrática, acolhe todos os que amam os livros, mas igualmente os que os entendem como objectos maçadores, procurando aí o digital e o livre acesso a outras formas de conservar e de aceder à informação e ao conhecimento. O livre acesso é gratuito, logo a biblioteca promove a igualdade, atenuando assimetrias que noutros espaços se tornam mais nítidas.

Há poucas paisagens tão emocionantes como a sucessão de estantes carregadas de livros, mimese da ordem do universo, cujas entradas codificadas são como mapas, podemos ir pelo autor, pelo título, pelo género, ou podemos simplesmente perder-nos, percorrer com as pontas dos dedos as lombadas dos livros, permitindo que um deles, por fim, nos interpele e nos convoque à comunhão com o autor e as suas palavras. É igualmente uma paisagem que nos permite fugir da dureza do quotidiano, da barbárie, do medo e da angústia. Mergulhar na leitura de um livro, está provado cientificamente, acalma o espírito, desvanece as angústias, liberta-nos das tensões, tem quase o efeito de uma noite bem dormida. Se nos entregarmos à leitura por alguns instantes, o nosso espírito fortalece-se, serena e começamos a respirar melhor. Pérez-Reverte, numa entrevista, belíssima, concedida a um jornal português, dizia que, quando o mundo se lhe tornava insuportável, refugiava-se na sua biblioteca e relia os seus autores preferidos, entre eles Pessoa.

Tenho quase a certeza que, se ficássemos, por acidente, fechados numa biblioteca durante a noite, no silêncio profundo, e se soubéssemos escutar, ouviríamos o murmúrio dos muitos autores aí guardados, em diálogo constante, numa espiral que se alimenta de si mesmo e que se alarga como os círculos na água, simultaneamente soma e multiplicação. Como não é conveniente que fiquemos fechados numa biblioteca, para abrir esse portal de acesso a um mundo fantástico, onde convivem fora do tempo e do espaço, autores de ontem e de hoje, ideias velhas que se mantêm frescas e ideias novas cujo fulgor brilha com mais intensidade por serem resultado das muitas ideias que as precederam, porque tudo é memória, para tudo isso, basta a aventura, o risco de abrir um livro, melhor se forem muitos livros, e de nos abandonarmos a eles. Viajaremos até lugares reais e fantásticos, experimentaremos todas as sensações, conheceremos todos os sentimentos. Fechado o livro, seremos maiores e melhores do que éramos antes daquele livro, porque a leitura nos torna maiores do que somos, mais livres, mais esclarecidos, mais empáticos, mais conhecedores.

Regresso a Borges, que também disse: “chega-se a ser grande por aquilo que se lê e não por aquilo que se escreve.”, que é um pensamento belíssimo e que atribui ao leitor, ao sujeito de curiosidade, de aprendizagem, uma dimensão inaugural, pois que , sem leitor, o livro está morto. Este poder, de ser, de fazer, de sentir, existe nesse lugar mágico, próximo, de livre acesso, que é a biblioteca e, se for escolar, mais ainda. Aí poderemos incluir todos os alunos, independentemente da sua origem e do seu contexto, aí poderemos cuidar da saúde mental das nossas crianças e jovens, aí poderemos levá-los a aprender e a cultivar os valores de uma cidadania esclarecida, democrática, tolerante e aberta ao outro, aí poderemos ceder-lhes diferentes formas de informação e conhecimento, aí poderemos mostrar-lhe que a memória e a cultura são inalienáveis, aí poderemos educar-nos para os direitos, aí poderemos cumprir a nossa missão, porque a biblioteca é o coração da escola.

Assim, as bibliotecas escolares do Agrupamento de Escolas de Cister são agentes de transformação e de inclusão, são parceiras inalienáveis na concretização dos objetivos do projeto educativo, são parte de todos os projetos que abraçamos, são inspiração para uma ação educativa flexível, inovadora, humanista, tecnológica, ética e estética. Não imagino as nossas escolas sem as suas bibliotecas.

13
Mai24

Poema I

livrosparaadiarofimdomundo

Poema I

 

Naquele dia, vi

que a felicidade é feita de luz,

de água e de céu ao anoitecer,

sussurros de rosa, azul, lilás,

de verdes vultos recortados

e do som dos pássaros 

quando se recolhem.

A nós, basta-nos ver

com todos os sentidos.

 

11
Mai24

#10/2024 - Hotel Savoy, Joseph Roth: da metáfora

livrosparaadiarofimdomundo

Hotel Savoy

D. Quixote,

154 páginas

Joseph Roth é um dos meus autores preferidos. Há qualquer coisa na sua escrita que me prende, não sei se umas certas notas de nostalgia, não sei se a elegância da escrita, não sei..., mas gosto sempre dos seus livros.

Este Hotel Savoy, parafraseando uma das frases do próprio livro, parece-me o mais russo dos seus romances, quase próximo de Dostoievski. Há, quanto a mim, uma tensão social latente, emergente, entre os habitantes da cidade onde se situa o Hotel, entre os hóspedes do Hotel, entre os hóspedes e os funcionários do hotel. Tudo é tensão neste livro.

Gabriel Dan é judeu, foi prisioneiro de guerra, durante três anos, num campo na Sibéria, regressa a casa, passando por uma espécie de peregrinação desde o campo de prisioneiros, desempenhando várias funções subalternas e assalariadas até ali chegar: a uma cidade que fica às portas da Europa, ao hotel mais europeu daquela cidade oriental. Ser o Hotel mais europeu significava que tinha um porteiro fardado, criadas de toucas brancas, casas de banho inglesas, elevadores, lâmpadas elétricas... enfim, pequenos luxos conotados com a Europa.

Não consigo deixar de ver aquele hotel, onde o protagonista, apesar de pobre e desenraizado, pode hospedar-se, embora num dos quartos mais baratos, como uma metáfora da Europa, tanto do período após a Primeira Guerra Mundial, como da de hoje, aquelas em que vivemos: igualmente ameaçada pela guerra, igualmente percorrida por hordas de pessoas em busca de  um lugar de ser com dignidade. Esta hipótese de leitura sustenta-se em algumas passagens da obra, que são quase fragrantes, denúncias de um quadro de pobreza, abandono, assimetrias sociais e ecnómicas, que volvido um século, persistem na Europa e continuam a separar as pessoas em função do que possuem. No Hotel Savoy, as pessoas importantes, ricas e poderosas estão hospedadas nos andares inferiores, nos quais os quartos são arejados, amplos e limpos por criadas de touca branca, porque neles há uma maior preocupação com a limpeza. Quanto mais se sobe nos andares, maior é a pobreza, quando não a indigência dos hóspedes, doentes, dependentes de usurários que deles se aproveitam, subalimentados, vendo-se obrigados a entregarem-se a papéis degradantes para poderem subsistir. 

Diz-nos o narrador que, em todas as cidades do mundo, há sempre hotéis Savoy, onde uns vivem e outros morrem... 

Os excluídos, por tudo isto, encontram-se sempre em trânsito, ambicionando um outro lugar, acreditando que, algures, haverá uma cidade, sempre a próxima cidade, um outro país - linha do horizonte que nunca se alcança - onde finalmente poderão ser felizes e escapar à sua condição: Viena, Paris, a América.

É impossível não estabelecer o paralelismo com a atualidade, com a Europa de hoje, a cuja porta tantos tentam uma vida melhor.

Repito, gosto de livros que me interpelam, que me deixam cicatrizes, que me levam a olhar para o outro com as lentes da empatia e da tolerância, daí que goste deste livro, ainda que ele me tenha deixado um pouco desconcertada.

Recomendo para ler e, em especial, para reler, porque nem todas as implicações são óbvias na primeria leitura.

 

 

07
Mai24

#9/2024 _ Felizes anos de castigo, Fleur Jaeggy: a força das palavras não ditas

livrosparaadiarofimdomundo

Felizes Anos de Castigo

Alfaguara

113 páginas

Não conhecia a autora, foi uma compra arriscada. Devemos sempre procurar conhecer outros autores, para não corrermos o risco de perder boas leituras. Risco sempre de evitar.

Esta obra é um livrinho, nem dá para uma tarde de leitura. No entanto, ler um livro sem interrupção chega a ser muito satisfatório. Há um prazer quase sensual em terminar um livro e depois arrumá-lo na estante, é uma sensação de plenitude. Enfim, chega dos meus excursos sobre a leitura.

Felizes anos de castigo correspondem à designação dos anos que a protagonista/narradora passou num dos colégios internos. A história deste livro conta especificamente os anos num desses colégios, com a idade de catorze anos. Percebe-se como a convivência entre as meninas do colégio, oriundas de vários pontos do globo estava profundamente hierarquizada, como todos os movimentos assentavam em táticas para se conquistar um lugar, se mais ou menos popular, mostrar-se mais ou menos acessível, conseguir fazer amizade com quem se escolheu. Esse esforço constante, podia levar a que as jovens emulassem uma das escolhidas como caminho para a afirmação.

É uma história tecida de fascínio, sedução, risco e muita, muita ambiguidade. 

O livro está escrito de forma quase seca, fria, distante, como se filtrada por um tecido fino, uma espécie de sfumatto literário. Faltam-nos algumas palavras, enerva que as coisas não sejam dissecdadas, fiquem numa espécie de limbo que resulta de uma "filmagem", que não nos dá as explicações que sentimos necessitar. Acresce que todo o livro é perpassado por uma forte tensão: social? emocional? sexual?.

Outra imagem que me ficou do livro é como se houvesse na história um jogo de espelhos: a narradora cede ao fascínio, quase obsessão por Fréderique, mas exerce sobre nós o mesmo fascíno. ela tenta compreender a essência, o je ne sais quoi,  da colega. O leitor tenta o mesmo com a protagonista, que nos seduz, que nos escapa, a quem queremos também conhecer e compreender, talvez agradar.

"infância vetusta"; "alegria pela dor", "morre quem não existe" são núcleos semânticos que remetem para uma espécie de prenúncio de morte, de podridão, de dor que perpassa pelas páginas do livro. A frieza das suas frases é reflexo da frieza, da distância entre estas jovens e as suas famílias, cujas ordens vêm de longe, escritas, palavras não articuladas. É profundamente nostálgico este livro.

Fica, da leitura, uma espécie de perplexidade, de incompreensão. Fez-me lembrar os contos de Hélia Correia, há qualquer coisa de maligno, de selvático, de contido, que não chega a libertar-se, mas que fermenta sob aquilo que se escolhe desvelar. Leitura curiosa, poderosa, desafiadora. Literatura, portanto.

 

 

06
Mai24

Um toque no coração II

livrosparaadiarofimdomundo

Há tempos, a Sofia procurou-nos para estagiar connosco. 

Aceitamos, normalmente aceitamos quem nos porcura para completar a sua formação. É preciso estar aos serviço da comunidade e contribuir para a formação e o aumento das qualificações da nossa população.

Como estagiária foi marcante a sua delicadeza e a sua gentileza. Foi marcante também a disposição para trabalhar com as crianças.

Quando o estágio terminou, foi despedir-se de mim, no mesmo tom.

Às vezes, cruzamo-nos com pessoas a quem apetece abraçar, a quem apetece manter por perto, tal é a sua aura de gentileza.

A partir daí, em momentos especiais, recebo uma mensagem da Sofia, pelo Natal, por outro pretexto qualquer. São mensagens simples, mas trazem com elas uma brisa de carinho, de reconforto, de calor. Deixam em mim uma forte impressão de gratidão. Saber que, algures, no tempo e no espaço, alguém, desinteressadamente, tem de mim uma memória que me faz merecer esses gestos de humanismo, de uma grandeza invejável, pois quem se dá ssim aos outros é uma inspiração para quem tem o privilégio de merecer essas formas de amor.

Ontem, dia da Mãe, recebi mais uma mensagem da Sofia, a desejar-me um bom dia da Mãe. Mais um gesto bonito, gratuito, que me mereceu este texto. Como testemunho de que podemos manter acesa a fé nas pessoas, os maus não vencem sempre, fazem é mais barulho; como forma de agradecimento, porque me sinto muito humilde perante este gesto; como homenagem à Sofia, por ser especial e espalhar o bem sem esperar nada em troca.

Este texto é para si, Sofia.

04
Mai24

#7/2024 - Mentiras de Mulher, Ludmila Ulitskaya: a arte de sobreviver

livrosparaadiarofimdomundo

Mentiras de Mulher

Cavalo de Ferro

155 páginas

UlitsKaya é uma escritora de que tenho lido os volumes traduzidos em Portugal. É uma autora com grande domínio da escrita, como se os seus livros fossem sempre resultado de uma rememoração, um discurso contido, mas forte, limpo, mas sublime, denso, mas humano. 

Neste caso, o livro integra várias narrativas, todas protagonizadas por mulheres, unidas pela mesma personagem, Génia, intelecutal russa, que se movimenta em diferentes cenários, de cujo percurso nos vamos apercebendo pelas informações disseminadas pelos diferentes capítulos.

Génia é testemunha e confidente de vários relatos e episódios vividos por outras mulheres, de origens, idades e profissões diferentes. Em comum, têm histórias que contêm algo de fantástico, que as eleva acima dos outros, e que começam sempre por fascinar, comover, espantar, indignar Génia. Inevitavelmente, essas histórias vêm todas a revelar-se falsas, são mentiras de mulher. Lutos, adultérios, ilusões e desilusões, esses construtos são, na verdade, estratégias de superação e de sobrevivência a que cada uma delas recorre para suportar as contingências de uma existência, anódina, indiferenciada, triste. 

Esta leitura envolve-nos, fascina-nos, intriga-nos, como sempre em Ulitskaya. É um tecer da escrita moroso, amoroso, cuidado, quase hipnótico. O tom nunca é grandiloquente, é como se esta escrita fossem relatos partilhados em surdina, mais assentes na reflexão sobre, do que nos saltos imprevistos das peripécias. Do conjunto destas mentiras, vão emergindo as indiossincrasias da sociedade russa após a queda do regime soviético.

É leitura de se recomendar, para quem quer dos livros mais do que uma história bem engrenada e procura o pulsar da grande literatura, da escrita primorosa, que nos enreda mais do que a história. 

 

 

 

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