#11/2024 - Apneia, Tânia Ganho:
Casa das Letras
690 páginas
Às vezes, apetece-nos mergulhar num livro de cabeça, abandonarmo-nos a ele e deixar que essa leitura nos absorva, enquanto durar. Foi nesse estado de espírito que peguei neste livro. Recomendadíssimo por uma amiga, que partilha comigo muitas leituras e um gosto muito semelhante, sabia, à partida, que não me iria desiludir. O livro é extenso e prometia boas horas de leitura. Hoje, à distância de uma semana, penso nessa amiga, a entrar no gabinete e a dizer-me "tens de ler este livro." Ela sabia o que estava a dizer.
Não resistindo a um trocadilho fácil, diria que lemos este livro em apneia, tal a intensidade das suas páginas. É quase uma armadilha, o leitor chega ali, desprevenido, lê dois ou três capítulos (os capítulos são curtos) e é, literalmente, fisgado e arrastado para a narrativa.
O livro conta a história de Adriana que abandona o marido Alessandro, levando consigo o filho de cinco anos e é partir dessa decisão que a narrativa ganha fôlego. Em minha opinião, todo o livro evidencia uma enorme inteligência na sua composição, a estrutura mimetiza a mensagem. As primeiras páginas são ainda evasivas, incertas, ainda não conhecemos Adriana, aquele casamento parece ter alguns porblemas, alguma instabilidade, mas pouco percetível, porque a verdade é que os danos são subtilmente inflingidos, de maneira insidiosa, minando a integridade psicológica de Adriana. É ao longo da leitura que nos é revelado o alcance do mal. Alessandro é metódicamente cruel, meticuloso no mal que exerce e Adriana é remetida à metáfora da rã mergulhada na água que vai aquecendo até a aniquilar, porque a habituação a impede de reagir aos sinais de alarme. É este o tipo de violência de que Adriana é objeto. Outro aspeto a sublinhar é, pegando num conceito da teoria literária, o facto de Adriana ser verdadeiramente uma personagem modelada, que se transforma e se transfigura num processo que começa no instante em que abandona o seu casamento. Há uma trajetória demorada que leva a personagem de uma espécie de passividade e apatia à mulher que bate o pé, diz não, enfrenta e confronta, recorre a todos os meios para se salvar a si e ao filho do polvo maldoso que são as ações despudoradas do seu agressor, porque, sem levantar um dedo, o marido é um predador, um manipulador, uma aranha que tece a teia onde os incautos se deixam enredar. O ritmo da narrativa é, por isso, muito mais rápido no final do livro, precipitando os acontecimentos. A construção das três personagens, pai, mãe e filho, é uma das chaves da qualidade deste livro, são todos inesquecíveis. O embate de Adriana com uma justiça lenta, enviesada por narrativas contraditórias, quase preguiçosa, negligente ou excessivamente cautelosa, revela uma dimensão escondida de todas as questões ligadas à violência doméstica e às situações de todo e qualquer abuso, terreno minado onde ninguém parece querer aventurar-se, arriscar, procurar a verdade. A extensão do livro espelha estes meandros de lentos avanços e demasiados recusos, de profunda impotência, solidão e revolta das vítimas, condenadas inexoravalmente à dúvida, à descrença, a rótulos que comprometem a fiabilidade das suas narrativas. É kafkiano! Adriana e o filho são fustigados por uma inércia que parece favorecer sempre o agressor.
Dizia a minha amiga: "É um livro que nos persegue", eu digo que nos assombra, mas criamos uma tal empatia com Adriana e o filho, prendemos a respiração juntamente com eles e corremos pelas páginas na esperança de que ambos encontrem uma saída da teia malevolamente tecida à volta deles, ansiando para que se libertem, venham ao de cima, inspirem finalmente o ar de que precisam e consigam, enfim, deixar de viver em apneia.
Que leitura! que difícil que é fazer-lhe justiça.
Não deixem escapar este livro, é poderoso, impregna-se em nós e obceca-nos. Adoro este efeito de um livro em mim. Que experiência de leitura.