Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Livros para adiar o fim do mundo

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Livros para adiar o fim do mundo

05
Jan20

#1/2020 - Fora de si, Sasha Marianna Salzmann

livrosparaadiarofimdomundo

Wook.pt - Fora de Si

Género: romance (de família e de formação)

Editora. D. Quixote

424 páginas

 

Este Fora de si, de Sasha Marianna Salzmann foi a primeira leitura de 2020. Este livro "aconteceu-me" na Bertrand de Leiria, quando passi só para ver, como sempre. Entretanto, estes meus olhinhos cairam em cima do Augustus, que está na minha lista dos livros a ler, e fiz o que faço sempre quando "talvez vá comprar um livro", comecei a andar pela livraria com o Augustus na mão, até que decidi comprá-lo. Na prateleira das novidades, estava o romance de Sasha Salzmann e peguei-lhe e li a sinopse. Por baixo do livro, havia uma plaquinha com um breve texto de Maria do Rosário Pedreira, em que esta afirmava que tinha ficado agarrada ao livro e que tinha gostado muito, muito. Mas que espertos estes senhores da Bertrand! Ainda assim, fui para a caixa com o Augustus. Só que na hora de pagar, arrumei o que tinha na mão e fui buscar este.

Há algumas curiosidades sobre a história deste livro: é uma obra de estreia que, inesperadamente, foi nomeada para o Prémio do Livro Alemão, parece que é raro isso acontecer. Além disso venceu o Prémio Jurgen Ponto e já está traduzido em vários línguas. Também a tradução foi premiada com o Grande Prémio de tradução literária Francisco de Magalhães APT/SPA 2019. Por último, o tradutor dirige ainda um agradecimento a José Milhazes pela ajuda na compreensão de determinadas expressões russas que surgem no original e para a forma como o ajudou a perceber a cultura russa. É, assim, um livro com uma biografia interessante.

A obra conta-nos a história de uma família, incluindo no relato os bisavós, os avós e os pais da protagonista Áli, Alissa e é nesse resgate da memória familiar que a personagem procura o conhecimento de si mesma, talvez um lugar de ancoragem. Há uma frase que funciona nitidamente como mise en abîme  da narrativa: "a dada altura apercebo-me que se pode impingir às pessoas seja que história for. Elas querem é ouvir histórias. E então que paguem por isso, as histórias de famílias trágicas, sobretudo, rendem bastante."

A história desta família é conturbada, como só poderia ser a história de uma família judia nos anos da 2ª Guerra Mundial (embora não seja essa a temática central), quando é oriunda da União Soviética. É, em especial, uma história marcada pela emigração, pelo desenraizamente que sucede à chegada a um país estranho, de que não se domina a língua e onde não há lugar de ser. É a história tantas vezes repetida pelo mundo de ontem e pelo de hoje, é a história da indiferença, da marginalização, mas, acima de tudo, da frustração de expectativas. Nesse sentido, a autora equaciona ainda outra face da emigração: a impossibilidade de regressar. O emigrado fica condenado a um limbo, não chega a ser no país de acolhimento, não pode voltar a ser no país de origem, em ambas as coordenadas é vítima de discriminação. Assim o vem a sentir Anton, irmão gémeo de Áli, quando, em criança, visita a terra natal na companhia do pai. É assim que o vem a descobrir Kóstia, o pai, quando pensa em abandonar a Alemanha e regressar à União soviética: "Não sabia que a ideia de regressar é algo que não existe". Há ainda outra frase que é lapidar: "A emigração mata".

O tempo, nesta obra, é tratado como o tempo da memória, com as suas analepses e prolepses, já que a forma como o experienciamos é muito pouco linear. Mas o tempo individual, psicológico é influenciado, determinado pelo tempo histórico. Daí que, ao traçar a sua genealogia, Áli recupere igualmente alguns momento decisivos do século XX e dos primóridios do século XXI, perspetivando criticamente a sucessão de factos que nos conduz tantas vezes a encruzilhadas perigosas. O romance leva-nos desde várias cidades da União Soviética, Volvogrado, Odessa, Moscovo, até ao sul da Alemanha, mas também, e uma parte importante, a Istambul, onde tanto Anton como Áli desembocam e por onde se deixam ficar até ao tempo que antecedeu o golpe de estado de 2016. As personagens são desenraizadas e não parece haver maneira de resolver essa lacuna, o que faz que sejam personagens em trânsito, que procuram algo e que se procuram a si mesmas.

Este é um livro importante. Há dias, nesse palco efémero que é o facebook, li uma frase, de que não consegui fixar a autoria, que dizia que os livros servem para nos fazer pensar. Este livro cumpre bem esse papel. Leva-nos a (re)pensar o mundo em que vivemos, coloca-nos no lugar do outro, humaniza-nos para que façamos frente a tanto discurso de exclusão, de xenofobia, de medo, de intolerância que, cada vez mais denodadamente, se faz ouvir. É um livro que nos responsabiliza. Como dizia e bem o papa Francisco, quando não conseguimos encontrar os culpados, então todos somos culpados e, tantos de nós, protegidos pelos direitos que conquistámos, esqecemo-nos que neste mundo torto ainda há tanta gente a viver de forma indigna, esquecida, marginal. Também é importante, porque nos desperta a curiosidade, não há ali a radiografia realista de um tempo, há sugestões, há referências, cabe ao leitor desvendá-las, aprofundá-las e explicá-las para que a verdade seja revelada.

Os livros estão em relação. Este lembrou-me dois, cuja leitura recomendo igualmente:

Wook.pt - O Ministério da Felicidade Suprema

o segundo livro de Arundhati Roy, o primeiro que escreveu e publicou, vinte anos depois do fantástico O Deus das Pequenas Coisas. (prometo um post) e 

Wook.pt - Orlando

por causa da questão do género. 

Espero ter-vos aguçado a curiosidade. Vale a pena este Fora de Si.

   

 

 

2 comentários

Comentar post

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2022
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2021
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2020
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2019
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2018
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2017
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2016
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2015
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2014
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub