#1/2020 - Fora de si, Sasha Marianna Salzmann
Género: romance (de família e de formação)
Editora. D. Quixote
424 páginas
Este Fora de si, de Sasha Marianna Salzmann foi a primeira leitura de 2020. Este livro "aconteceu-me" na Bertrand de Leiria, quando passi só para ver, como sempre. Entretanto, estes meus olhinhos cairam em cima do Augustus, que está na minha lista dos livros a ler, e fiz o que faço sempre quando "talvez vá comprar um livro", comecei a andar pela livraria com o Augustus na mão, até que decidi comprá-lo. Na prateleira das novidades, estava o romance de Sasha Salzmann e peguei-lhe e li a sinopse. Por baixo do livro, havia uma plaquinha com um breve texto de Maria do Rosário Pedreira, em que esta afirmava que tinha ficado agarrada ao livro e que tinha gostado muito, muito. Mas que espertos estes senhores da Bertrand! Ainda assim, fui para a caixa com o Augustus. Só que na hora de pagar, arrumei o que tinha na mão e fui buscar este.
Há algumas curiosidades sobre a história deste livro: é uma obra de estreia que, inesperadamente, foi nomeada para o Prémio do Livro Alemão, parece que é raro isso acontecer. Além disso venceu o Prémio Jurgen Ponto e já está traduzido em vários línguas. Também a tradução foi premiada com o Grande Prémio de tradução literária Francisco de Magalhães APT/SPA 2019. Por último, o tradutor dirige ainda um agradecimento a José Milhazes pela ajuda na compreensão de determinadas expressões russas que surgem no original e para a forma como o ajudou a perceber a cultura russa. É, assim, um livro com uma biografia interessante.
A obra conta-nos a história de uma família, incluindo no relato os bisavós, os avós e os pais da protagonista Áli, Alissa e é nesse resgate da memória familiar que a personagem procura o conhecimento de si mesma, talvez um lugar de ancoragem. Há uma frase que funciona nitidamente como mise en abîme da narrativa: "a dada altura apercebo-me que se pode impingir às pessoas seja que história for. Elas querem é ouvir histórias. E então que paguem por isso, as histórias de famílias trágicas, sobretudo, rendem bastante."
A história desta família é conturbada, como só poderia ser a história de uma família judia nos anos da 2ª Guerra Mundial (embora não seja essa a temática central), quando é oriunda da União Soviética. É, em especial, uma história marcada pela emigração, pelo desenraizamente que sucede à chegada a um país estranho, de que não se domina a língua e onde não há lugar de ser. É a história tantas vezes repetida pelo mundo de ontem e pelo de hoje, é a história da indiferença, da marginalização, mas, acima de tudo, da frustração de expectativas. Nesse sentido, a autora equaciona ainda outra face da emigração: a impossibilidade de regressar. O emigrado fica condenado a um limbo, não chega a ser no país de acolhimento, não pode voltar a ser no país de origem, em ambas as coordenadas é vítima de discriminação. Assim o vem a sentir Anton, irmão gémeo de Áli, quando, em criança, visita a terra natal na companhia do pai. É assim que o vem a descobrir Kóstia, o pai, quando pensa em abandonar a Alemanha e regressar à União soviética: "Não sabia que a ideia de regressar é algo que não existe". Há ainda outra frase que é lapidar: "A emigração mata".
O tempo, nesta obra, é tratado como o tempo da memória, com as suas analepses e prolepses, já que a forma como o experienciamos é muito pouco linear. Mas o tempo individual, psicológico é influenciado, determinado pelo tempo histórico. Daí que, ao traçar a sua genealogia, Áli recupere igualmente alguns momento decisivos do século XX e dos primóridios do século XXI, perspetivando criticamente a sucessão de factos que nos conduz tantas vezes a encruzilhadas perigosas. O romance leva-nos desde várias cidades da União Soviética, Volvogrado, Odessa, Moscovo, até ao sul da Alemanha, mas também, e uma parte importante, a Istambul, onde tanto Anton como Áli desembocam e por onde se deixam ficar até ao tempo que antecedeu o golpe de estado de 2016. As personagens são desenraizadas e não parece haver maneira de resolver essa lacuna, o que faz que sejam personagens em trânsito, que procuram algo e que se procuram a si mesmas.
Este é um livro importante. Há dias, nesse palco efémero que é o facebook, li uma frase, de que não consegui fixar a autoria, que dizia que os livros servem para nos fazer pensar. Este livro cumpre bem esse papel. Leva-nos a (re)pensar o mundo em que vivemos, coloca-nos no lugar do outro, humaniza-nos para que façamos frente a tanto discurso de exclusão, de xenofobia, de medo, de intolerância que, cada vez mais denodadamente, se faz ouvir. É um livro que nos responsabiliza. Como dizia e bem o papa Francisco, quando não conseguimos encontrar os culpados, então todos somos culpados e, tantos de nós, protegidos pelos direitos que conquistámos, esqecemo-nos que neste mundo torto ainda há tanta gente a viver de forma indigna, esquecida, marginal. Também é importante, porque nos desperta a curiosidade, não há ali a radiografia realista de um tempo, há sugestões, há referências, cabe ao leitor desvendá-las, aprofundá-las e explicá-las para que a verdade seja revelada.
Os livros estão em relação. Este lembrou-me dois, cuja leitura recomendo igualmente:
o segundo livro de Arundhati Roy, o primeiro que escreveu e publicou, vinte anos depois do fantástico O Deus das Pequenas Coisas. (prometo um post) e
por causa da questão do género.
Espero ter-vos aguçado a curiosidade. Vale a pena este Fora de Si.