#14/2021 - A leste do paraíso, John Steibeck: a força dos clássicos
Livros do Brasil
744 páginas
Emprestado
Cheguei a este livro por causa do aniversário do meu irmão: a minha mãe encarregou-me de lhe comprar um livro e ele, não fosse a coisa correr mal, orientou-me no sentido dos clássicos. Depois daquele tempo na livraria - que também era papelaria - com escolhas muito limitadas, mas ainda assim sem aqueles livros que vêm em saquinhos de organza, com títulos brilhantes e lábios vermelhos na capa, tive de decidir entre este e O último tambor. O meu irmão gosta de livros com biografia e o segundo tinha aquele carisma de ser uma redescoberta, tal como sucedeu com Stoner, de que o meu irmão também gostou muito e que me deu a ler. Acabei por me decidir pelo Steinbeck, porque já tinha o outro e sempre podíamos fazer troca de livros.
Depois de terminar esta leitura de fôlego - começo a achar que a idade traz alguma limitação de páginas, ou pode ser a fase em que se lê - afinal são quase oitocentas páginas, mais uma vez se colocou a questão dos cem mil euros: como é que eu li tão pouca coisa de Steinbeck? Parece que só tinha lido A pérola, de que recordo a música da pérola. Lá vou eu ter de corrigir este desvio cósmico, ficou já apalavrado As vinhas da ira.
A leste do paraíso é um romance que se localiza no vale do Salinas, na Califórnia, e a ação remete para o povoamento desse vale, com raízes nos colonizadores espanhóis, passando por outras vagas de imigrantes, como os irlandeses, com a figura de Samuel Hamilton a representá-los e que surge como avô materno do próprio autor, cuja jovalidade, criatividade, visionarismo e humanidade o fazem uma personagem inesquecível; ou como os chineses que, tal como Lee, são suficientemente astutos de maneira a garantirem o seu sustento, vestindo uma espécie de figurino que se coaduna com o que se espera deles, mas não deixando de, com grande comicidade, desvendar as enormes vantagens de se tornarem criados indispensáveis. A primeira "personagem" do livro é precisamente o vale, com as suas quatro estações, distinguindo-se a exuberância da primavera da aridez, seca e poeirenta do verão, que faz do Salinas um leito pedregoso, a riqueza das cores do outono em contraste com o frio gélido do inverno, aos homens cabe-lhes adapatar-se ao meio e colher os frutos que a terra lhes permite. Da personagem física passamos para as figuras humanas, subordinadas ao tópico ancestral retirado da Bíblia - o mito fundador de Caim e Abel - repetido ao longo das páginas do romance, primeiro com Adam e Charles, ambos despertando sentimentos diferentes ao pai, o que origina o ciúme e o desejo de vingança, depois com Aaron e com Caleb, filhos de Adam, mas talvez de Charles..., marcados pelo mesmo estigma nascido das diferenças de personalidade e agudizado pelo facto de Aaron se fazer amar sem qualquer esforço.
O romance é profundamente filosófico, tocando em várias questões que se prendem com a explicação da condição humana, a visão desnuda das fraquezas, das complexidades e, embora tomando o tópico bíblico da disputa entre os irmãos, o drama existencial não estão tão bem demarcado como surge no texto bíblico, não há aqui a diferença a preto e branco entre o bem e o mal. Se Aaron é belo, branco e louro, fácil de amar, impusionado pelos melhores sentimentos, de que se destaca a compaixão, a verdade é que é demasiado inflexível, intolerante, sem capacidade de perdão, diríamos nós - no esquema de valores que fomos privilegiando, que lhe falta resiliência. É Caleb, o rimão, escuro, atormentado, muito mais perspicaz, manipulador, inteligente, sensível, obrgado a proteger-se debaixo de uma capa de indiferença, de força, de dureza que mais não faz do que evitar que seja conhecido na sua fragilidade, a não ser por Lee que, verdadeiramente, o criou e que conhece a sua natureza, tentando, ora protegê-lo, ora espicaçá-lo para que se defenda das suas próprias torutras, da forma como se vai punindo por uma culpa que nem sequer está formada, a não ser a de Caleb surgir como a figura mais complexa, logo mais ricamente humana de todo o romance. Aliás, não pude deixar de sentir que a monstruosa Cathy, egoista, perigosa, esteriotipada, verdadeira mulher demónio, condenando à perdição todos os que dela se aproximam - fez-me lembrar a descrição do polvo no Sermão de Santo António, do padre António Vieira. Em última análise, o mito de Caim e Abel é como que espiralizado, vai-se desdobrando a partir desse ponto inicial e a humanidade, no seu longo trajeto pela história, mais não faz do que glosar esses poucos versículos que se vêm - tal como explicam as próprias personagens - a tornar a história mais importante para toda a humanidade.
É impossível, num texto tão breve, dar conta das imensas veredas que se abrem nesta narrativa, riquíssima, oferecendo um mundo de interpretações e de leituras possíveis, daí que o melhor remédio seja ler, pois claro e, depois, propor um ciclo de estudos sobre esta obra. Está lá tudo o que é ingrediente para compor uma belíssima história, capaz de nos prender e de nos mudar.
Como em outras situações, recordo alguns livros que versaram a mesma história, o que só vem atestar a força fundadora do mito dos dois irmãos separados pelos primeiros sentimentos que puseram o homem contra o seu semelhante, mito que, se não fecundou a realidade, fecundou para sempre a literatura. Alguém conhece outros irmãos de papel que deem conta deste pecado original?