#16/2021 - Cães maus não dançam, Arturo Pérez-Reverte: não deixou cicatriz
Editora Asa
156 páginas
Aruro Pérez-Reverte é um dos escritores de que mais gosto, sobretudo por causa de dois títulos que, para mim, são duas obras primas de dois géneros completamente diferentes: O Hussardo e A sombra da Águia. Mas também gostei imenso de Homens Bons. Além disso, gosto do homem (até em mais do que um sentido) e dos valores pelos quais pugna e a forma como, através dele, vemos valorizadas as letras. Por tudo isto e mais uns pós, é sempre com grande expectativa que chego a um dos seus livros, em especial porque Pérez-Reverte é um escritor de enorme versatilidade.
Assim, achei piada ao facto de haver dois livros nos escaparates que remetiam para a raça canina, A cadela, a minha mais recente leitura, e este Cães maus não dançam. Comprei os dois e li-os de seguida. Sobre o livro de Pilar Quintana já escrevi, faltava-me este.
Comecemos pelo título, a frase do título aponta duas pistas de leitura: que há cães maus, que estes não dançam, ou seja, não são dados a seda. Quanto a esses pressupostos, o livro não desilude. As personagens do texto são todas cães... e cadelas, organizam-se à maneira dos cães, carregam uma memória biológica que os leva a procurarem um dono e a ele se manterem ligados... desde que isso assegure o alimento pelo menos. O ponto de vist assumido é o dos cães, é do mundo animal que se ergue a história, em parte condicionada pela proximidade aos humanos. Já no seu elogio aos peixes, António Vieira frisava o facto de uma das virtudes dos peixes ser o facto de estes não se domesticarem, ao contrário de muitos outros animais. Sem dúvida que, no outro extremo, se encontram os cães, cuja má fortuna nasce da sua proximidade aos homens e da sua lealdade tantas vezes atraiçoada. A galeria de personagens cumpre duas funcionalidades distintas: por um lado desvela os maus tratos que os cães sofrem às mãos dos humanos, em especial daqueles que os exploram em função do lucro resultante da barbárie como são as lutas de cães e a arena não podia ser mais cruel: ali se mata ou ali se morre, só muito raramente é outro o destino. Os cães são verdadeiros gladiadores dos novos coliseus, vivem enquanto alimentarem o lucro e o sadismo. Por outro lado, esta cosmovisão canina funciona como uma alegoria da sociedade atual, um fresco amargo daquilo que nos move e daquilo que são as feridas abertas e sangrentas da nossa sociedade.
Não pude deixar de pensar em Espártaco, o gladiador, enquanto lia o livro, creio que é um pouco a inspiração subjacente ao livro: o campeão da arena que, pela amizade, subverte as regras do jogo, que se une ao adversário, quebrando o jugo e vivendo até à última centelha os sorvos de uma liberdade condenada, mas inebriante, com um preço incluído, mas por muito elevado que seja, que vale a pena pagar.
Mas há aqui uma pontinha de desilusão: não há nada de verdadeiramente inesperado neste livro. É um texto comprometido, bem intencionado - muito bem intencionado e cumpre honestamente aquilo a que se propõe . mas não me maravilhou, isso não, e eu estou numa idade em que preciso de maravilhamento, de ser tocada, até pode ser de maneira sacudida e brutal, desde que, depois do livro, fique uma espécie de cicatriz. Neste caso, houve um arranhão, mas isto passa. Ainda assim, experimentem e venham cá desenganar-me se me tiver escapado algum promenor.