#18/2020 - Fim, Fernanda Torres - a ressaca da vida
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 187
Origem: promoções do dia Mundial do Livro
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"Uma vez, li que a morte era o momento mais significativo da vida, e é mesmo. A minha foi boa, está sendo, não por muito mais"
Este livro já se tinha cruzado comigo algumas vezes e fiquei sempre com vontade experimentar. Fernanda Torres, como é sabido, é filha da atriz brasileira, A Senhora Fernanda Montenegro (vénia), ela própria atriz também que a minha geração conhece e recorda das telenovelas brasileiras. Essas circunstãncias deixavam-me curiosa. Quem - na minha persptiva - conhecendo o sucesso e a fama por via da representação se dá ao trabalho de se dedicar à escrita, um ofício tão penoso e tão angustiante? Não há nada mais steressante que uma folha em branco, seja a primeira página do livro, do estudo, do teste, da tese. A página em branco é uma tortura.
Acontece ainda que esta é a obra de estreia de Fernanda Torres e a "desgraçada" conheceu uma fortuna crítica muito, muito invejável. A raiva que dá romances de estreia assim. Além do mais, nomes sonantes da cultura "encomendaram" o livro com admiração: Mario Sergio Conti, Manuel da costa Pinto, Antonio Cicero, João Moreira Salles, entre outros. Consensual é o reconhecimento da mestria e da técnica narrativas da autora.
O livro conta-nos a história, ou melhor o fim da história de cinco amigos cariocas. Como o título anuncia - portanto não há aqui spoilers - estas cinco personagens encontram-se no fim da vida, aliás o romance narra o momento exato da morte de cada um deles, vivido e descrito com intensidade. Atenção, não há lamúrias, não há clichés. Há sim, reviravoltas, clarividências, arrependimentos também. As personagens estão longe, muito longe, dos heróis românticos que determinada literatura cultivou. pertencem todos eles muito mais à categoria de anti-heróis e, na sua fraqueza, cinismo, violência, deboche, boémia, não deixam de nos ser simpáticos. São homens, as plavras que os cinzelam nestas páginas são cruas, são verosímeis, são cruéis e brutais em alguns momentos, moralmente discutíveis a passos. O romance está dividido em tantos capítulos quantas as personagens, a técnica adotada oscila entre o fluxo de consciência e a hetero narrativa (não sei se isto existe), mas cada um dos amigos completa no seu capítulo a visão dos outros, sendo que, do conjunto, resultam retratos fragmentários, complexos e multifacetados. Intervêm ainda as esposas, as amantes, os filhos, as amigas das esposas, as cunhadas, as amigas das amigas. Uma galeria que compõe a trama e os retratos, sem que nenhum seja definitivo.
O fluxo narrativo, o ritmo das frases, a linguagem genuinamente carioca, com expressões idiomáticas e a liberdade criativa - literária e linguística - que os grandes autores brasileiros cultivam e que aprendi a apreciar estão lá. Dou-vos um exemplo, a palavra "quitinete" - têm de ler com pronúncia brasileira para perceberem que é kitchenette. O livro é, no seu conjunto, de uma riqueza literária, estética, narrativa, humana e filosófica como é raro encontrar-se.
Vão por mim, se já se cruzaram com este livro, se ficaram interessados, não hesitem. Vale mesmo muito a pena. Quanto a mim, já tenho na lista de desejos o outro livro da autora. Fiquei mesmo convencida. Além disso, não sendo um livro extenso, prende tanto que, assim que o comecei, não consegui parar, recordando-me o verso de Álvaro de Campos que diz mais ou menos isto "pão sem tempo de manteiga nos dentes" - não o devorei, engoli-o num trago. Sou uma esbanjadora. Preciso de arranjar outro livro assim rapidamente.
P.S. Os livros que se sucederam este fim de semana têm entre si uma relação, casual, mas interessante. O primeiro, Uma vida inteira, narra uma vida mais ou menos por ordem cronológica, este Fim centra-se no fim da vida e a narrativa é em retrospetiva, seguir-se-á Lincoln no Bardo (que já comecei) cujas personagens se encontram no "bardo" em não tempo nem espaço imediatamente após a morte. "E esta, hein?"