#19/2020 - Arde o Musgo Cinzento, Thor Vilhjálmsson
Editora: Cavalo de Ferro
Páginas: 243
Através da literatura e da televisão já estive muitas vezes na Islândia e é um retorno que agradeço. Arde o musgo cinzento - que título belíssimo, com a grandeza que o relato nos inspira - foi uma estreia na edição em Língua Portuguesa, proporcionada pela Cavalo de Ferro, corrigindo uma lacuna que impedia o público português de contactar com mais um dos nomes maiores da literatura nórdica. Tal como indiciado pelo título - ao qual me rendi quando o vi exposto na livraria - todo o romance é perpassado por uma espécie de enigma que nos mantém os sentidos aguçados, tal como o musgo que tutela a história, os tons são cinzentos, densos, enredados, intensos.
A ação acompanha a viagem de Ásmundur - que é juiz e poeta - pelas paisagens islandesas até chegar a uma aldeia remota, mais quinta do que aldeia, onde foi cometido um crime que ele deve julgar. Ao longo da sua estadia, o juiz poeta, ou o poeta juiz - é difícil saber qual o papel em que a personagem mais se empenha - tem como interlocutor o pastor da aldeia e o primeiro confronto sucede devido a estas duas persanagens moldadas por circunstâncias tão diferentes.
A narrativa é pouco linear e funde nas suas páginas as memórias de Ásmundur e dos dois irmãos - atenção à figura feminina - acusados do crime; as cartas do pai de Ásmundur, também magistrado, que o instruem a desempenhar este papel no qual se vem a estrear; dois crimes, dois assassínios motivados pelo amor; a temática do incesto e dos sentimentos que escapam aos sistemas de valores estabelecidos; a maternidade e o abandono; o amor trágico; a tragédia da própria existência humana em meios tão hostis e tão remotos; a grandeza das paisagens islandesas; o gelo, a neve, o sol, o verão e o outono; a impiedade da natureza e dos homens; a poesia e a linguagem despojada, fria e estéril das atas de um julgamento. Tudo isto atravessa estas páginas, mas é-nos dado numa linguagem poética, a roçar o sublime, marcada pelo ritmo da própria poesia, mas também do respirar desse grande mundo gelado e ao mesmo tempo vibrante da Islândia.
O autor não nos facilita a vida, não nos presenteia com um relato linear, objetivo, simples e, no entanto, também não se pode dizer que o tenha complicado ou enredado, ou emaranhado. O que acontece nestas páginas é semelhante a um momento em que alguém nos coloca a mão no braço e nos pede que escutemos, que aprendamos a perspetivar, que não julguemos apriori, que aceitemos que há cirscuntâncias que, ditando os destinos, podem muito bem escapar à nossa compreensão, devido ao lugar de onde olhamos.
Gostei muito, muito deste livro, é um outro campeonato, definitivamente da primeira divisão. É um teste, um desafio, é literatura no seu melhor - versátil, complexa, interessante, universal e tragicamente humana. Silêncio, que a se vai ler literatura: prosa e poesia.