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Livros para adiar o fim do mundo

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Livros para adiar o fim do mundo

24
Fev14

365 dias depois (Fim)

livrosparaadiarofimdomundo
Essa foi a ironia com a qual não contei. Na verdade, acabei por sersalva. A queda foi amortecida pelas piteiras, pelos arbustos lenhosos quecrescem nesta encosta quase a pique. Fiquei ali, como uma lâmpada cuja ligaçãoelétrica tem intermitências. Oscilando entre a consciência e a inconsciência. Soubedepois do meu resgate, de um salvamento impressionante de dedicação e resistênciaao perigo. Soube depois de procedimentos médicos que evitaram que perecesse. Soubedepois do longo tempo em que permaneci num coma induzido. Soube depois que nãoter morrido significava uma nova vida, podia recomeçar, podia tentar. Soube muitodepois que não iria conseguir. Debati-me durante meses com uma sensação deirrealidade, como se tivesse ficado lá e de lá pudesse ver o que foiacontecendo comigo. Não fui capaz de enfrentar a astenia da minha vontade. Otempo passou a arrastar-se demasiado penosamente e todos dias era tentada pelopensamento de lamentar que tudo não tivesse terminado ali. Dei-me conta doesforço dos outros à minha volta, dos olhares discretos, das meias palavras. Ocuidado que punham na maneira como lidavam comigo era palpável, colava-se-me àpele como suor de verão. Cansavam-me as tentativas dos outros para que eupercebesse a sorte que tinha tido (sorte, a palavra é de uma ironia atroz),onde eles viam sorte, eu via um lamentável erro, uma brincadeira de alguém comum sentido de humor muito negro. Eu não queria viver. Eu tinha morrido para mimnaquele dia. O que restava eram coisas que fazem um corpo: pele, unhas, cabelo,órgãos a funcionar, a cumprirem uma função biológica tecida na memóriaancestral que faz com não consigamos deixar de respirar. Eu já não estava ali.Desde aquele dia malogrado eu estive sempre aqui, perplexa com o meu atofalhado. Por isso, estou aqui.
Estou serena. Trezentos e sessenta e cinco dias serviram para amadureceresta resolução. Venho devolver o que daqui foi retirado. Venho encontrar-mecomigo que me deixei aqui, sozinha, a vaguear sem corpo, à espera desta devoluçãopara poder ir. Até onde os meus olhos alcançam, mar, mar, mar. Aqui quero sersepultada. Quero deixar que este elemento líquido me envolva, me submerja, me inume.Não quero outro epitáfio senão a espuma das ondas sobre mim. Não quero outras lágrimassenão as da chuvas que vierem. Nem outros suspiros senão os dos ventosdistantes. É preciso que se saiba que não tenho medo, nem da dor, nem do queestá um pouco para além disso e que não sei o que é. O desconhecido que está àminha frente é menos aterrador do que o conhecido que tenho atrás de mim.

Desço um pouco mais, há um ponto no precipício que sobressai como umaplataforma sobre o mar, é para ali que tenho que ir. Procuro o melhor ângulo. Graçasao terraço rochoso que se abre sobre o vazio, o meu vulto fica invisível dapraia. Não quero alarmismos, seria demasiado arriscado. Fica de mim este gestocalculado, pensado e estranho. Até para mim é um mistério. Uma força poderosaimpeliu-me para aqui. Abro os braços. Mergulho no vazio, rezando pelo fim. Vivoum derradeiro sopro de vida e de liberdade. É o livre arbítrio. Fui.
19
Fev14

365 dias depois (V)

livrosparaadiarofimdomundo
            Atravesseia vila neste estado de espírito, entregue a este meu desporto que é observar osoutros, imaginar-lhes a história que trazem consigo, outra forma de ADN,identidades intransmissíveis, as histórias não se repetem. Se não há doisrostos iguais, decerto não haverá duas histórias de vida iguais, ainda quetodas comecem com o nascimento e terminem seja de que maneira for. Mesmo nasmortes em massa, a forma como cada um enfrenta o momento final é distinta,inconfundível. Tomo, finalmente, uma rua que sobe ao promontório. Subo, subo,subo, em ritmo brando, sem pressa. Caminho com os olhos baixos, forçada pelainclinação. As ruas que atravesso estão sossegadas, parece que toda a gentesaiu para um outro lugar. São ruas sombrias e frescas, escondidas do sol, porvezes sou surpreendida por uma mais ventosa e um arrepio corre-me pela pele. Háum ano, não fiz este caminho, vim de carro, conduzi até aqui num estado deexaltação que não é o mesmo de hoje. Hoje estou tranquila, o terreno que piso éconhecido, só tenho que fazer com que tudo dê certo, corrigir o erro de cálculoque não soube prever e que me obrigou a voltar, a terminar o que aqui comecei edeixei incompleto. Ato falhado.
            Quando chego lá acima, tenho queinverter o rumo. Tomo a direção do sol que se começa a pôr, inclinado já sobreo horizonte. O ângulo ainda não me encandeia a visão. Nada me incomoda, senão apreocupação de ser exata e eficaz. Caminho sempre, não sei já a que velocidade.Todo o meu ser está concentrado. Estou reduzida a um impulso cerebral quecomanda mecanicamente cada um dos meus gestos. Afasto-me da zona das casas.Cruzo-me com poucas pessoas, o fim da tarde convida mais à esplanada ou aoregresso a casa. Há trezentos e sessenta e cinco dias era este o quadro. Épreciso que pense agora no que aqui se passou. É esta a minha história. Vim atéaqui com um propósito. Cheguei de carro, que estacionei à beira de uma estradade terra, oculta por uns canaviais. À beira do precipício, mirei todo aquelemar em redor. O local que escolhi é alto e o som do mar chega surdo eindistinto. Lá em baixo, as ondas criam um manto de espuma muito característico,que, visto de cima, parece suave e consistente, macio. Nesse dia, as lágrimascorriam-me pela cara, copiosas, imparáveis. Devo ter soluçado. Vivia umdesespero total, um desamparo e uma solidão que não percebia. Queria ser salvae ninguém estava por perto. Como é que ninguém sabia que eu precisava tanto deajuda? Como é que miraculosamente ao meu lado não se materializava um rosto, umgesto, a redenção? Porque é que as palavras certas não haviam de ser ditas e euveria o que agora não conseguia sequer imaginar. Nada disso aconteceu. Eucheguei-me bem à beira, cega ainda das lágrimas. Limpei-as como pude. Olhei emvolta e decidi que assim tinha que ser. Abeirei-me ainda mais do vazio e viessa imagem, a de um vazio que vai ao encontro de outro. Inclinei-me bem para afrente e dei um impulso mais forte ao meu corpo, como quem mergulha, e era oque eu estava a fazer, a mergulhar na morte porque não suportava a vida.

            Ao contrário do que se pensa, a iminênciado fim não é rápida, é lenta, muito lenta. Podia jurar que o meu cérebro sedeslocou todo para um sítio só. Todas as ligações nervosas se devem terconcentrado na antecipação do choque e da dor que adviria do meu gesto. Nãopensei que ia morrer, creio que pensei que continuaria ainda depois, queassistiria a tudo e que continuaria a ser eu. O meu corpo embateu finalmente emalguma coisa, ainda não era a dor, porque continuava a chocar, a rebolar. Agorao filme era muito, muito rápido. Comecei a sentir pancadas secas eestremecimentos. Fui sacudida vezes sem conta, sentia a pele a rasgar-seenquanto caía e rebolava, caía e rebolava, caía e rebolava naquilo que pareciaum infinito. O corpo parou enfim e o que restava de mim, as ligações nervosasque resistiram no meu centro, apagaram-se e mergulhei na escuridão. Não, nãomorri. 
18
Fev14

365 dias depois (IV)

livrosparaadiarofimdomundo
            Descemos uma rua estreita e muitoinclinada que termina numa praia. Sinto vividamente os movimentos do autocarro,quase travo ao mesmo tempo que o motorista. O meu corpo inclina-se para afrente por causa da travagem progressiva. O volante é rodado em movimentosamplos e bem desenhados, prende depois de ter completado a rotação. O homem queo conduz também inclina o seu corpo. Somos uma nova espécie de árvores e outrosos ventos que nos vergam. Aperto uma mão na outra e todo o meu corpo se retesade tensão. Estou perto. Há trezentos e sessenta e cinco dias atrás, fiz estemesmo percurso. A memória é tão forte e tão clara que confundo os tempos e ohoje é o ontem. Toda a cena é uma repetição em câmara lenta. Posso viver deolhos fechados a partir daqui, sei exatamente os tempos, o cronograma, tenhoquase os passos contados. O autocarro faz uma curva muito apertada para entrarna garagem do fim da linha, eis o ligeiro sobressalto e o rangido das molas dasuspensão quando transpõe o limite dos portões que encerram a garagem. Entra-mepelas narinas o cheiro acre e enjoativo a gasóleo que paira no ar e que nadaparece poder retirar das garagens. Em criança, este cheiro era o suficientepara me fazer vomitar. Mais uma curva ampla, primeiro para a direita e depoispara a esquerda, linha oito. Um grande relógio de parede, redondo e brancomarca dezoito horas e quinze minutos. Há uma diferença de alguns minutos emrelação ao dia do passado. Uma sacudidela breve e súbita indica que parámos. Aspessoas à minha volta levantam-se com lentidão. Retiram volumes, alongamdiscretamente o corpo, soltam-se alguns risos, há conversas abafados que nãocompreendo, enquanto outras são terminadas à pressa e numa oitava mais alta doque deviam. Também eu retiro o meu saco. Penduro-o no ombro. Encaminho-me paraa saída, desço os degraus e o cheiro é mais forte, quase insuportável. Saiodali mesmo para a rua. Está vento e os cheiros iodados do mar chegam até mim. Sorvo-oscom gratidão, enquanto inclino a cabeça para tirar o cabelo dos olhos. Afasto-merapidamente, viro à direita no fim da rua e sigo por um passeio largo que correperpendicular ao mar.

            É quase o fim do dia de praia. Háimensa gente nas ruas, um vozear contínuo rodeia-me. As pessoas com que mecruzo obrigam-me a reduzir o meu passo. Sem que dê conta, aquele bulícioestival interfere comigo e caminho com um ligeiro sorriso nos lábios, quaseesquecida de mim e do que aqui me trouxe. Não faz mal, tudo estará no sítiocerto assim que for preciso e eu também estarei a horas no meu encontro comigomesmo. Por agora, posso deixar-me ir. Paira ainda no ar um cheiro que semprerelacionei com o do creme Nívea que usava em criança. As peles queimadas do solfazem os olhos dos outros mais brilhantes, toda a gente parece tão feliz, tãoacompanhada, tão cheia de vida, o que me impressiona. Pequenas lojas deartesanato oferecem imagens deste lugar em diferentes suportes, nas toalhas debanho, nas toalhas de mesa, nas camisolas, nas canecas, nas bases de copo: umalíngua de mar muito extensa, um areal vasto, ondas perfeitas e ao fundo umpromontório que entra pelo mar adentro quase a perder de vista, um cabo,finisterra. O cabo do fim. 
16
Fev14

365 dias depois (III)

livrosparaadiarofimdomundo
            Estive longe algum tempo, oautocarro já saiu da autoestrada. Segue por uma estrada que é bonita, ladeadade plátanos, corre sobre uma elevação de que se avista uma vale. A perder devista, terrenos agrícolas e casas dispersas. Alguns animais. A cidade ficou láatrás. A cadência do andamento vai-me entorpecendo. Fecho os olhos e entro numestado de semi-vigília que não me deixa entrar num sono profundo. A dor nopescoço desperta-me, é preciso que me ajeite melhor. A dor física tornou-se amaterialização de todas as outras dores. Diz-se que só experienciamos uma dorde cada vez, mas a dor física compatibiliza-se com o sofrimento e a angústiaque me vão torturando. As fraturas nos ossos curaram-se, os rasgões na pele desvaneceram-se,os golpes profundos fecharam-se e deixaram linhas pelo corpo que contam a minhahistória. A ansiedade e a angústia, pelo contrário, só sabem crescer,alimentam-se da minha vontade, esgotando-a pouco a pouco e vou mirrando dentrode mim. Por isso não me importo que o pescoço me doa, que tenha que me mexerdevagar e com cuidado, porque os meus ossos ainda estão a consolidar-se uns nosoutros, porque há linhas no meu corpo que continuam a doer se lhe toco, só napele não restam sinais. As crostas das escoriações foram caindo e a peleregenerou-se. Eu, essa abstração que habita em mim, não sou capaz de meregenerar. Enfio a mão por debaixo da manga da blusa que trago vestida eprocuro a cicatriz. É comprida, tem um toque estranho, faz um relevo quepercorro com os dedos, conto as marcas dos pontos, são dez. Já não me dói aqui.Sei a cor sem olhar, é rosa pálido. Há outras assim no meu corpo, desenhando ummapa que não me guia para lado nenhum, linhas sem continuidade, interrompidas,um ato falhado. Vou deslizando os dedos pela cicatriz, é um tique que ganhei,como quando se roda um anel no dedo só para se manter as mãos ocupadas enquantose pensa.
            A direção que o autocarro tomacoloca o sol do lado da minha janela. A luz é demasiado forte. Corro ascortinas e a penumbra conforta-me. Consigo recostar-me e volto a fechar osolhos, encosto com mais cuidado a cabeça no vidro, apoio-me na mão, o cotovelofincado no braço do banco. Descanso. A mente vagueia outra vez. Agora começo aficar ansiosa pelo fim da viagem, se pudesse apressaria o andamento. Imagino oautocarro em marcha de urgência pela estrada, os carros a encostarem, avelocidade a aumentar. Entrego-me a um jogo que fazia quando era criança, comose pudesse ver-me a deslocar-me no tempo, ver o tempo a decorrer. Daqui a poucomais de meia hora terei chegado, vejo-me, daqui, a descer do autocarro, aencarar a brancura do dia, a encaminhar-me por uma rua que desce em direção àpraia, olho para trás e vejo-me sentada no autocarro à espera que os grãos deareia se escoem na ampulheta. Daqui a trinta minutos estarei a fazer o queantevejo e depois passa num instante. A impaciência borbulha-me no sangue,acelera-o nas veias. É preciso que fique calma. Já sei! Procuro na lista de músicao Verão de Vivaldi. Os primeirosacordes prendem-me logo a atenção. Vou acompanhando as notas, os andamentos eesqueço-me de mim.
            O autocarro entra agora numa pequenavila. É a última paragem antes de chegarmos ao destino. Sei que nem chegará adesligar-se o motor. Será uma pausa breve. Abro de novo as cortinas. O dia impiedosode verão vai cedendo. O sol já se inclina. Lá fora, o ar deve ser mais respirável.Ao lado do ponto de paragem há um jardim, plano, arborizado. Combina tão bemcom a música que oiço. Faço mais um quadro, vejo os insetos que volteiam no ar,duas meninas correm, mesmo daqui consigo perceber que estão um bocadinhotranspiradas. Cruzam-se perigosamente com uma bicicleta. Há uma esplanada queestá cheia. Foco-me num homem sozinho que lê o jornal, tem uma chávena de café àsua frente, um copo com água. Os cabelos são ligeiramente compridos, já comalguns brancos. Está completamente absorto na leitura. É interessante. Se eu saísse,levantaria os olhos? Entretanto vejo uma senhora que desceu do autocarro,retira a bagagem, uma jovem encaminha-se para ela. Beijam-se e abraçam-se. Estãofelizes por se reverem. Se eu descer, alguém se encaminhará para mim? Alguém sealegrará com o meu regresso? Disparate, não conheço ninguém aqui. Desce sobremim uma tristeza miúda, como uma chuvinha fraca. Para quem posso eu voltar?Ninguém está verdadeiramente à minha espera em lugar nenhum. A minha família,que tem cuidado de mim, fá-lo mais por dever para com os outros do que porafeição por mim. O simples pensamento de que posso ser uma dever na vida dosoutros acabrunha-me. O motorista reentra apressadamente no autocarro e voltamosa andar. Mais uma vez um balanço pesado. É a última etapa. Mal consigo estarparada. Endireito-me no assento, sem querer, inclino-me um pouco para a frente,procurando inconscientemente acelerar este veículo que teima em mexer maisdevagar do que a minha inquietação.
            Sem ver porquê,lembro-me agora de uma outra viagem, desta vez é primavera. Regresso a casa e háalguém à minha espera. Está um homem dentro de um carro estacionado. Vejo-o aseguir com o olhar o movimento do autocarro. É ele que se endireita no assento,crava as mãos no volante. Ainda não me viu. Viu-me agora, sorrimos rasgadamenteum para o outro, aceno-lhe. Quando paramos, sou quase a primeira a pôr-me de pé.Educadamente sou passagem às pessoas no corredor. Tremo ligeiramente. A portavai-se aproximando. Murmuro boa tarde ao motorista com quem cruzo o olhar nomomento de sair. Desço os três degraus e ele está já fora do carro. Quase corremosum para o outro, não nos contemos e abraçamo-nos. Mostramo-nos contidos, mas nãoé assim que nos sentimos. O abraço torna-se mais apertado. Naquele dia, volteipara alguém, houve alegria por eu estar finalmente ali. No tempo em que haviaum sentido, um rumo. Depois as coisas foram acabando, desmoronaram-se e hojeninguém me espera. Sou só eu que vou ao meu encontro.
15
Fev14

365 dias depois (II)

livrosparaadiarofimdomundo
           Há vinte anosatrás, também era verão e também era amor. Uma rapariga muito jovemdespedia-se, numa rua lateral a esta avenida movimentada, de um jovem tão jovemquanto ela. Mais alto, ele debruça-se sobre ela e beija-a com suavidade natesta. É um beijo leve, não houve uma pressão mais forte. Os dois sabiam queera a última vez que se viam, que tudo acabava ali e não era por não se amarem.Ela não devolveu o beijo, deixou-se beijar apenas e, sem o saber ainda, aquelemomento ficou para sempre, nunca mais o esqueceu e aprendeu a viver com elecomo se fosse uma cicatriz. Os anos fizeram com que olhasse para a cicatriz equase não se lembrasse como tinha sido feita, habitando-se à marca,familiarizando-se com ela.
            Com o autocarro ainda parado, olheifixamente para aquele ponto da rua. Os edifícios eram exatamente os mesmos, as mesmasas cores, o mesmo movimento de pessoas a ir e a vir, os mesmos carros parados eem movimento. Como há vinte anos atrás, nenhum destes pormenores é realmente vistopor mim. O que estou a olhar é para aquela rapariga que fui, capaz de amarassim, talvez por ter sido uma vez jovem, talvez porque o tempo não me tivesseainda corroído. Nesse tempo, aguentei aquela despedida quase sem uma palavra,sem uma lágrima, nem uma queixa. Não perguntei porquê, sabia que tinha de ser.Nos dias que se seguiram, tive que aprender a encher aquele vazio. Soube muitobem viver apesar de ter morrido um pouco e soube mostrar-me como se aqueleinstante não tivesse acontecido e, até hoje, ninguém soube que um dia medespedi de alguém que era tão importante para mim. Nunca mais o vi, nunca maissoube nada dele. Mesmo quando me encontrei com pessoas que o conheciam, nuncaperguntei por ele. Ninguém sabia o que tínhamos tido juntos e eu nunca dei omais pequeno sinal. As coincidências da vida são tão curiosas. Há vinte anosatrás, depois de me ter despedido dele, fui apanhar um autocarro. Desci estaavenida que agora subo para fazer mais uma viagem que há de ser decisiva.Também hoje é um dia de despedida. Sorrio àquela rapariga e despeço-me delatambém. A mulher que sou hoje está feliz por ela ter vivido um amor assim, tudovale a pena quando alma não é pequena, e a minha creio que nunca o foi,parece-me mais de um tamanho excessivo para poder caber em mim.
            O autocarro arrancou finalmente,outra vez o mesmo balanço pesado. Tomada a faixa lateral que dá acesso à autoestrada,começámos a andar cada vez mais depressa, os prédios começaram a suceder-secada vez com mais rapidez, as pessoas pareciam paradas nos passeios e eu deixeide me conseguir fixar em pontos que me entretivessem os pensamento. Voltei aficar consciente de mim. Fui obrigada a pensar no que ia fazer. Fiz uma revisãoda minha vida. Divorciada, por vontade minha, a bem do rigor é importantedizê-lo para que depois não se diga que isso explica alguma coisa. Mãe de umfilho de catorze anos, com quem não consegui ligar-me tanto como desejaria.Ultimamente, tem passado mais tempo com o pai, porque sim, e eu não tenho feitonada para que seja de outra. Microempresária de sucesso – consigo sustentar-me.Sou bastante bonita e sei que sou, daí ser bastante segura. Quando caminho,tenho um tique que é abrir bem os ombros e levantar ligeiramente a cabeça,pareço um pouco altiva, mas é porque quero. Amei e fui amada, mais do que deviae, possivelmente, mais do que merecia. Traí e fui traída, rejeitei e fuirejeitada, sempre mais do que podia ou devia. Excedi-me e os deuses não perdoame talvez me queiram castigar. Pode bem ser que não haja deuses, que ojulgamento a temer seja o nosso, que a condenação tenhamos que ser nós a executá-la.Não sei e sei-o bem.
            O autocarro rola agora livremente naautoestrada pouco congestionada. Vem-me outra cena à memória. Dia de balanço? Aviagem é propícia a estes devaneios, a estes reencontros com o nosso passado. Sou,por natureza, reflexiva, ensimesmada. A minha memória não me dá tréguas. Derepente, lembro-me de pequenos episódios da minha vida e, à distância dos anos,revivo tão nitidamente esses passos lembrados que eles me despertam, no momentoda lembrança, sentimentos de quem está na posição de juiz. Avalio o que fiz, oque disse, as opções que tomei, os deslizes, o mal que fiz aos outros e coro devergonha, surpreendo-me, sobressalto-me com a minha frieza. Descobri alguresque sou uma pessoa fria, que não me emociono com facilidade, que não arrancocabelos, que não grito, não choro, não me apiedo pelos outros. Tenho um bocadinhode desgosto de mim. Há pouco mudei de música, alguém canta nos meus ouvidos quedevemos tomar conta de nós próprios. Concordo, tenho de tomar conta de mim,como sei, mais mal do que bem. Deixo aos outros a mesma liberdade. Não tenhotomado bem conta de mim, tenho-me ferido e mutilado, sempre em excesso, sempremais do que devia.

            Lá me enredei eu nestes meuspensamentos dispersos que se embaraçam uns nos outros. É outra vez verão. Uma pequenavila balnear, numas férias. Uma relação que já durava há tempo, duas pessoasque se conheciam bem e já cansadas um do outro. Não souberam ler os sinais. Odia tinha sido de tensão. Estavam mal-humorados. Não tinham conseguidosintonizar a mesma onda de frequência. Pareciam estar em desacordo acerca detudo: horários, o que fazer, o que comer. Duas pessoas que nunca se tivessemvisto conseguiriam sintonizar-se melhor. Já tinham passado a fase em que eram bem-educadosum com o outro. A familiaridade tinha revelado tantas diferenças que já não sabiamem que se sustentar. Depois de um dia feito de pequenas batalhas feita deironias e de subentendidos, saíram para jantar. Desentenderam-se logo no pedidoe a tensão atingiu um tal nível que até o empregado parecia evitar aquela mesa.Houve um momento em, inadvertidamente, as mãos se tocaram e sentiram umadescarga de eletricidade estática. Deve ter sido esse choque que acendeu orastilho. Quando saíram do restaurante, estavam descontrolados e não havia decoroque os pudesse conter. Discutiram no meio da rua, primeiro em surdina, dedentes rilhados, e olhos baixos. Pararam a meio da marginal e enfrentaram-secomo inimigos em que se estavam a tornar. Empurraram-se com força. Avançaramassim pela rua, aos empurrões, bêbados de raiva. As vozes levantaram-se sem darempor isso, porque já não se ouviam. Palavras que quiseram dizer e que nunca poderiamter sido ditas se fosse amor. Em casa, cega de raiva, atirei-lhe uma bofetada àcara. Não tive tempo de saborear o gosto desse gesto violento, instantaneamentesenti a minha cabeça a rodopiar com o impacto da sua mão na minha cara e logo aseguir outra. Caí sobre a cama e ele caiu sobre mim. Perdi a conta às vezes quenos batemos. Não se podia descer mais baixo. Era o fim de tudo. Nessa noite fizsozinha uma viagem de regresso, em solilóquio a ensinar-me o que fazer depois. Sintomais viva do que nunca a vergonha daquele dia, só isso. Nada que possa serlamentado, foi um erro, um dos muitos que cometi. Desta mulher excessiva não meposso despedir, levo-a comigo para onde for, preciso dela para a solução que encontrei.
12
Fev14

365 dias depois

livrosparaadiarofimdomundo
365 dias depois

            O autocarro 42 entrou na garagem, ospassageiros que, como eu, esperavam na linha 6 começaram a levantar-se, ajuntar as suas coisas e a encaminharem-se para a zona de embarque. Ninguémparecia ter muita pressa, eu também não. Tenho todo o tempo da minha vida parafazer esta viagem. Ninguém sabe, desta vez não me quis precipitar. Pondereimuito bem e a minha decisão está tomada, sei que não vou recuar e que vou serbem sucedida.
            Subo os degraus do autocarro,apresento o bilhete ao motorista que não me olha. Somos indevassáveis. Se elesoubesse… talvez um dia venha a ouvir falar do meu caso e nunca o consiga ligara esta mulher cuidadosamente arranjada que lhe estendeu um bilhete para elepicar. Não pode saber o significado deste bilhete, o princípio de uma viagemarriscada e estranha. Como poderia saber? Não trazemos as nossas resoluçõespintadas na testa, com uma seta luminosa a piscar… Caminho lentamente pelocorredor até encontrar um lugar vago junto à janela, rezo para que o autocarronão encha, não quero companhia. Gosto de me isolar dos outros durante a viagem,olhar pelo vidro, ver as paisagens desfiadas nos meus olhos, imaginar vidas ecompor histórias. Não suporto o convívio forçado em espaços exíguos, a boaeducação dos sorrisos de conveniência, as convenções sociais, mas volto-me todapara o exterior e nunca, como em viagem, me interesso tanto pelos outros. Issofaz com que prefira viajar de noite. Ver as luzes das casas acesas, vislumbrarum toque da decoração, um vulto furtivo numa janela, reconhecer espaços:cozinha, sala quarto, cozinha, sala, quarto. Agradeço às pessoas que deixam ascortinas afastadas. No entanto, interesso-me como quem se interessa por umaabstração, é um exercício mental que não carece de reciprocidade. Não queroconhecer aquelas pessoas.
            Encontrado o lugar, arrumo o pequenosaco no compartimento em cima. Está quase vazio, uma carteira, os meusdocumentos – vou precisar deles – uma garrafa de água. Oiço as conversas que merodeiam nitidamente, mas ninguém me dá mais atenção do que a que quero e que éa que merece uma mulher que viaja sozinha. Com cuidado, arrumo-me no assento. Omeu corpo que vem recuperando lentamente acusa o esforço, doem-me ainda certosmovimentos, ainda me sinto presa. Foi uma convalescença difícil e muitodemorada. Estive tão maltratada, tão ferida. A autonomia de que disponho hoje é-mepreciosa, gosto de me sentir livre outra vez. Recosto-me e volto a ajeitar-me àprocura de um conforto que não pode ser total, mas encontrei-o. Estou instaladae sem querer solto um suspiro profundo que estava entalado no meu peito. Liberto-me.Tiro um pequeno aparelho do bolso, ponho os fones, e a música de Chopin,noturna, enche-me os ouvidos. Para além do prazer do meu compositor favorito,afastarão quem quiser meter conversa.
            Sinto o autocarro estremecerenquanto, lento, se põe em movimento. O motorista manobra com cuidado no espaçoapertado da garagem. Quando sai para o sol quente da tarde, a luminosidadeconforta-me. Olho pelo vidro e vejo os carros parados na faixa contrária. Umamulher jovem fala com exuberância, ri e gesticula. Está ao telefone, vejo o fiodo auricular. Parece louca numa cela de isolamento, alienada. É bonita. As árvoresdo espaço que separa as faixas de rodagem têm o tronco escuro, muito escuro, afolhagem pouco densa e as campânulas violáceas lançam na rua uma miríade desombras que os transeuntes procuram para se aliviar do calor sufocante. Digomentalmente o nome das árvores, porque sempre gostei da sonoridade: jacarandás.E a palavra faz-me viajar para um sítio distante, exótico. Não parecem de cá,os jacarandás, mas abundam nas ruas desta cidade.
O autocarro avança devagar, como eu gosto, e eu observo avidamente a vidaque se desenrola à minha frente, como se estivesse num filme anacronicamentemudo e impossivelmente tecnicolor, o som do piano acentua a inverosimilhança.Dois jovens parados no passeio beijam-se carinhosamente. Têm um ar tão jovem,ainda são uma promessa e enterneço-me com aquele amor despretensioso, semquerer ser ostensivo. São bonitos assim na fotografia que lhe tiro com a minharetina. Não quero saber do negativo da imagem, fico-me pela fotografiarevelada. Deixo-os para trás, não me volto para os olhar, porque já atentonoutro quadro.
            É o amor outra vez. Um casal deidade avança devagar pelo passeio. É nítida a atenção que ele lhe dispensa,pelo modo discreto como lhe segura o braço, ela tem mesmo um ar de porcelanafina, de loiça antiga de boa qualidade. Está criteriosamente arranjada. Deveter sido muito, muito bonita, porque ainda é. O penteado lembra os anos setenta,num apanhado muito bonito, veste uma blusinha branca que é toda uma sugestão deleveza e frescura, a saia de pintinhas azuis é definitivamente acertada para oseu figurino. Leva na mão uma flor (rosa?), talvez de um tom marfim. Tudo compõeeste quadro delicado. Entram numa pastelaria que combina com eles. Ele dá-lhe apassagem com o charme que me transporta para um filme antigo. Já os imagino atomarem chá, talvez à inglesa, talvez de propósito haja scones. À noite vão sair, o tempo vai estar maravilhoso e eles vãoa um recital, tem de ser um recital de música clássica, a peça há de ser deSchumann e a imagem de Clara pairará nas notas musicais. E mais uma vez meenterneço.

            Regresso a mim, volto a ver o mundoconcreto lá fora e suspendo o meu devaneio. Sou surpreendida pela zona dacidade onde o autocarro se imobilizou na longa fila para um semáforo. Olho pelovidro e vejo uma rapariga muito jovem que deixei ali há tantos anos. Ela vem atémim sem eu querer, a minha memória devolve-ma tão concreta que quase lhe podiatocar. Deixo que as recordações fluam e viajo no tempo e aqueço-me naquelalembrança.
10
Fev14

Horóscopo de novembro (Fim)

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            Não nos deixar cair em tentação… masporquê? Quedas, dores, fracassos e tentações, as faces do autoconhecimento. Quandocaímos em tentação, sabemos de antemão que vamos sofrer. E quando passamos avida sem cair em tentação, não sofremos de coisas bem piores, desta náusea queo nosso poeta maior tão bem versejou? Como quero sofrer? De abulia? Ou conhecerum vislumbre de felicidade, mesmo que depois seja a queda livre? Cair em tentação,segundo a maga que lhe lia o destino, era subir uns degraus na Grande Montanha,mas pelo caminho mais espinhoso e doloroso. Ora bolas! Melhor os conselhos paraseguir uma alimentação saudável do que este somatório de clichés. Ah, sim?! Entãoporque continuas a a ler? Porque assim subo a Grande Montanha a voar, pois nãohei de errar mercê destes valiosos conselhos. Porque há os que gostam decaminhar calmamente até lá acima. Os que caem na tal tentação arriscam avertente escarpada e as quedas livres. Parece bem mais picante. Pois que seja –continuava a leitura da previsão – a verdade é que todos os caminhos vão dar a Roma,ou seja, ao Céu. (!?) O Mago recorda-lhe que tem tudo latente em si. Era muitosábio aquele Mago, ou seria apenas um ente atento que sabe que é sempre assim? Nãohá circunstâncias certas nem perfeitas – verdade – há uma tomada de consciênciaque acontece em qualquer altura da vida. A sua tinha-a a levado ao horóscopo,ou tinha sido o horóscopo a levá-la à tomada de consciência? Parece que aepifania se propiciava nos casos de dor forte, circunstância que levafatalmente à compreensão de que é preciso querer mais. Ora ali estava a chaveepigramática do seu horóscopo de Novembro, ela queria mais, a mediania não erapara ela, vamos, vamos, vamos (estava assim na previsão).
Finalmente, a previsão que ela esperava que viesse ao seu encontro: atençãoao dia de hoje, aguarda-a uma surpresa inesperada – claro que sim, se fosseesperada não era surpresa, toda a gente sabe como é difícil fazer festas surpresa.E ela, com algum ceticismo, pôs-se literalmente a olhar em volta de soslaio comose houvesse por ali uma surpresa guardada por alguém a pontos de saltar etornar real aquele horóscopo tão simpático que havia de colorir o seu domingocinzento, a sua vida de mediania, de compensar a sua opção pela comida saudável,a ousadia em ter deixado de fumar. Sim, afinal havia alguma justiça cósmica eestava a ser direcionada para si. Os planetas alinhavam-se, resolviam as suastensões, as quadraturas eram as mais propícias, a Lua, estava a entrar na casade Aquário, Saturno recuava e Vénus triunfava. Era hoje! Mas não para já que osfilhos estavam a entrar em casa e o marido também, portanto o cosmos teria queesperar para corrigir a sua trajetória.

Mais tarde, nesse domingo, teve que dar razão ao cosmos: sem que elapedisse, os filhos tinham posto a loiça na máquina e tinham-na posto a lavar eela não teve que dizer nada. Nunca, nunca mais desdenharia o horóscopo. Ansiavapelo horóscopo de Dezembro.
07
Fev14

Horóscopo de novembro (II)

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        Entre divertidae desalentada continuou a leitura. Incomodava-a aquela sensação de insatisfação.O desejo de viver uma reviravolta, de se emocionar, de vibrar. Enterrar aestranheza que lhe vinha da sensação de que na sua vida não havia tempo para avida. Sem resistir continuou a percorrer as diferentes janelas da página astral.Um desejo infantil de que naquele arrazoado sem lógica lhe fosse apontado umcaminho, se abrisse uma porta, de que uma centelha pudesse ser avistada edepois acarinhada e depois alimentada e que crescesse e que a vida fosse plena,fremente. Que dali crescesse um fogo destruidor. Que ela pudesse renascer dascinzas. Mais uma previsão que ela conseguiu adaptar ao seu estado de espírito:uma quadratura (relação de tensão) da Lua com Mercúrio pode trazer-lhe algumaconfusão (mais!?) em termos de ideias ou simplesmente perda de lucidez. E istoera uma promessa ou uma ameaça. Dada a sua abulia, podiam ser as duas coisas aomesmo tempo, ameacem-me com uma promessa, é disso que eu preciso. Quem deraperder a lucidez, agir irresponsavelmente, não ponderar, não calcular, nãomedir, não planear, não se prender em teias que se iam, que ia, tecendo à suavolta e nas quais se via cada vez mais enredada. Sim, sim, queira deus que aLua vá de encontro a Mercúrio e que daí resulte um choque cósmico capaz de aabalar. Agora, só com um choque cósmico é que lá conseguia chegar.
            Entretanto, já outro mentor apontavasoluções que nunca teriam ocorrido a pessoas de bom senso. Um entre aqueles queela desdenhava, mas continuava a ler, enfeitiçada, encontrando sinais que lhepermitiam interpretar a sua existência à luz de oráculos que o acaso lhe punha àfrente, atribuindo sentidos a palavras que navegavam no mundo virtual para quemulheres crédulas e incrédulas as procurassem e nelas se vissem refletidas – a menosque não fumassem, porque uma das recomendações não fazia sentido para todaselas (ver acima). Este alertava para a sensibilidade em relação a tudo o que arodeava – verdade – sobretudo em relação às milhentas tarefinhas que sempre aesperavam: arrumar, preparar, organizar, verificar… oh, oh, dizia quefacilmente se apercebia do estado de espírito das outras pessoas, disto nãoduvidava, filhos e marido estavam sempre num estado de espírito que osconvidava a esperar que a iniciativa partisse dela. Isso ela sabia.Acrescentava a possibilidade de sentir necessidade de manter secretos ossentimentos, conselho inteligente, sem dúvida, porque era de todo inconvenienteque se soubesse que ela vivia presa de uma impaciência tão grande que asufocava. Quanto à hipótese de sentir maior necessidade de, nesta fase, passarmais tempo com as pessoas que lhe são queridas, foi a primeira escorregadelaque viu naquele horóscopo de novembro. E se, pelo contrário, a sua urgênciafosse passar tempo longe das pessoas que lhe eram queridas? Que leituras não sefariam se ela verbalizasse essa fome de solidão. Pode a solidão ser umanecessidade? Pode.

            Uma vez mais, foi salva por umclique, mudou de página e viu-se na eminência de ter que seguir uma vida saudável,sob pena de ter um dia difícil de não poder controlar as emoções. Era melhorera, não fosse o dique romper-se de vez e ela nunca mais conseguir encontraraquele equilíbrio delicado feito de pés em pontas (mas as bailarinas dançam empontas…). Nada como controlar as emoções, um bom conselho viesse ele de ondeviesse. Este guru avisava-a agora, só agora, de que a semana ia ser de grandeexigência. Se os astros soubessem, se olhassem mais para os homens comuns e anónimoscá em baixo, não vaticinariam tantas evidências – todas as semanas sãoexigentes, duras, violentas e, ainda assim, é preciso cavalgá-las como quemequilibra um barco na crista da onda, afastando-o do naufrágio.
06
Fev14

Horóscopo de novembro

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Horóscopo deNovembro

            Era domingo, o primeiro domingo domês de Novembro. Estava sozinha em casa, um bocadinho sozinha, momento raro.Como sempre acontecia nessas horas, pelas quais ansiava nos dias de semana,sentia-se um pouco perdida, sem norte. Aquela urgência de preencher espaços embranco. Muitas vezes acabava na cozinha, escondendo no prazer de cozinhar omedo de estar consigo mesma. Naquele domingo fugiu de si sem ir para a cozinha.Ligou o seu computador e começou a correr as páginas. Abriu, por inércia, apágina do horóscopo. Procurou o seu signo. Sorriu perante as opções: horóscopodiário, horóscopo semanal, horóscopo mensal e horóscopo amoroso. Meu Deus, quefalha, porque não havia um horóscopo quinzenal? Foi clicando, foi lendo os vaticíniosque a esperavam: cuidado com a saúde, não faças aos outros aquilo que nãoqueres que te façam a ti, Saturno em linha com a Lua, trânsito de Vénus. Abriuo separador para a leitura mensal.
            Com o eclipse solar a decorrer nasua casa de carreira, Novembro será um mês trabalhoso e intenso, em que vai terque lidar com muita informação e vai ter que encontrar a melhor maneira de agerir. Chefes conscienciosos vão lá estar para dar uma ajuda e apoio à margem,colegas fantásticos irão guiá-lo quando as coisas se tornarem pesadas. Uma dascaracterísticas deste mês vai ser a necessidade de processar informação quetinha ficado enterrada no passado, que poderá ter a ver com a pessoa que ama.Risco de alguma perturbação sentimental, com desfecho surpreendente e algo agressivo.Um novo amor tende a surgir e dará início a um excelente período. Esta é acarta da apatia, do tédio, da área cinzenta, do mau humor. Na saúde (e nadoença?), estão favorecidos os tratamentos ortopédicos. Para garantir um bomritmo intestinal, é muito importante beber cerca de dois litros de água aolongo do dia, o que equivale a dez ou doze copos (de que tamanho?). Se o tabacoainda é um dos seus vícios sagrados, ouse em o reduzir fortemente (e os errosde português, também podemos ousar em os reduzir?). “Não espere uma crise paradescobrir o que é importante na sua vida” (Platão) (Assim mesmo!). E havia maisdo mesmo género: desde a leitura das cartas – e nunca eram as mesmas – aotrânsito de planetas, asteróides e estrelas de variadíssimo tamanho e importância,aos conflitos entre Úrano e Saturno, sem qualquer referência à Terra, passandopelo oráculo da saúde, da cabeça aos pés.
            Nisto, ela deteve-se numa frase quedizia que havia a possibilidade de um amor do passado regressar, trazendodesenvolvimentos emocionantes. Um amor do passado? Neste momento da sua vida,todos os amores lhe pareciam do passado e seria bom que todos conhecessemdesenvolvimentos emocionantes. Sabemos que estamos a morrer, ou pelo menos quejá não estamos na Primavera da vida, ou que já é Outono, quando começamos aolhar para nós e tomamos consciência de que são mais as coisas que já nãopoderemos fazer do que aquelas que nos falta fazer. A vida, quando se é jovem -muito jovem - é um imenso mar de possibilidades. Podes mudar de rumo, deprofissão, de namorado, de país, de religião, de sexo. A mudança está lá,latente, fervente. Depois, começas a fazer as opções, porque viver é optar e,sem saberes, foste eliminando uma série de hipóteses. É isto. Optar é igual aeliminar. Escolhes uma área de especialização, tens que esquecer a outra. Sequeres ser Arqueóloga, não poderás ser Física Teórica. Apaixonaste-te por umapessoa e casaste, em princípio, não convém que te apaixones outra vez, pelomenos, que não te apaixones muitas vezes. Tiveste filhos, não podes sair ànoite. Não podes sair à noite, não podes rir das farras com os teus amigos, comquem não saíste à noite. Os filhos precisam de ti, não podes aceitar aquelaoportunidade de trabalho na Austrália que tem a tua cara. Mas, podes olhartodos dias para a cara dos teus filhos e decidires que estás no lugar certo. AAustrália, tanto quanto se sabe também não vai sair do seu lugar por muitosanos. Queres controlar a tua fertilidade, tens menos prazer e liberdade no sexo,pelo menos tens de pensar se é seguro naquele dia. Outra coisa que vem com osfilhos é que já não pode ser onde e quanto te apetece. Começas, mesmo que nãoqueiras, a lembrar-te daquelas vezes em que foi tão bom perder a cabeça. Nãoqueres pensar, tomas a pílula. Tomas a pílula, lá se vai a libido, logo tensmenos vida sexual. De repente, mesmo que queiras, não podes ter mais filhos.Nunca mais sentirás um corpo a mexer dentro do teu, nunca mais pegarás numa mãofrágil como pétalas de flores e a vais acariciar com tanto cuidado, porque tensmedo que se quebre entre os dedos. Engordaste, tens celulite. Emagreceste,perdeste firmeza. Engordaste outra vez, tens ainda mais celulite e maisflacidez. E não é preciso continuar, está-se mesmo a ver onde é que estascontas vão parar. Tanto num caso como noutro, há biquínis que não vais poderusar, isto se mantiveres o sentido do ridículo. Se o tiveres perdido, porquerecusas que as possibilidades são cada vez menos, sendo ridícula, perdes ahipótese de te levarem a sério. Ás vezes, apetece mesmo que não nos levem a sério,noutras dá jeito. O teu rosto ganha novas curvas, são rugas. Se compras cremespara as rugas, é porque já não podes comprar creme para a acne.

Entre estas escolhas está a vivência do amor. 
04
Fev14

Um dia como os outros (Fim)

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        Na rua,atravessou o pátio, o cão aproximou-se dela e ganiu baixinho. Ela baixou-se,acariciou-lhe a cabeça com força, envolveu o focinho nas mãos e amou-osentidamente. O cão ganiu de novo, mas ela afastava-se e o animal ficouespecado no meio do pátio, a cabeça baixa, sem desviar os olhos, mas ela já nãoviu. Saiu para a rua e voltou a inspirar com força. Contornou a casa epercorreu o baldio que ficava nas traseiras. Em pouco tempo chegou ao poçoantigo, afastou a prancha de madeira, solta, que tapava a boca e olhou lá paradentro. O cheiro húmido atingiu-a. O poço estava meio cheio. Via-se o espelhode água imóvel, muito escuro. Não era possível ver o fundo, mas ela sabia que aprofundidade era grande. Era um daqueles poços que cada família construía háuns anos, as paredes exteriores estavam cobertas de musgo e verdete, asuperfície era rugosa, áspera. Lá dentro, as paredes eram lisas e cinzentas, comum aspecto lavado. Ela fechou os olhos e continuava a saber que era ela que aliestava, pousou as mãos em cima do parapeito e deixou que uma onda de si mesma asubmergisse. Viu-se todos os dias a fazer a mesma coisa e todos dias cada vezmais mais fora de si. Viu-se estrangeira perante os outros. Viu-se cansada,cansada, cansada. Sabia que não podia desistir, que não podia descansar de simesma. Se pudesse podia ser que aquele peso no peito fosse suportável. Mas nãoera.
            Não sabia quando é que tinha tomadoa decisão, não o podia explicar. Naquela manhã, quando abriu os olhos sabiaexatamente o que ia fazer, como se fosse mais uma tarefa na ordem do dia. Semreceio, sem susto, com precisão, dobrou-se sobre o parapeito, sentiu os pés alevantarem-se do chão, sentiu o corpo a deslizar pela parede. Perdeu ocontrolo, caiu. A água muito fria impediu-a de respirar e o corpo submergiuentre um chuá que deixou um eco estranho, uma agitação branca que respingou nasparedes… e mais não se sabe, só se imagina.

            Daí a pouco, o marido e os filhoschegariam para almoçar, como noutro dia qualquer.

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