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Mai14
Uma história feliz (I)
livrosparaadiarofimdomundo
Ele era um homem bonito. Tinha uns olhos grandes e escuros.O rosto era perfeito e atraía a atenção. A pele era morena e saudável, com aquele ar de exposição ao sol. Não, não era requeimada, ou curtida, como a pele dos homens do mar, nem dos homens da terra. Ele era bonito e sabia disso. Sem que fosse ostensivamente, cada vez que entrava numa sala, assumia um bocadinho uma atitude interrogativa que era dirigida aos circunstantes, uma pergunta muda: "viram que eu entrei?". Era uma pergunta retórica. As pessoas que estão vêem sempre as pessoas que entram, podem é não as ver como elas gostariam de ser vistas. Era solteiro, ninguém sabia, mas ele procurava uma mulher, soube-se depois que a procura incessantemente.
Ela era nova no sítio. Não era bonita nem feia. Era simpática, afável, delicada e muito correta nas suas maneiras. É preciso dizer outra vez: não era especialmente bonita, porque os casos extraordinários não acontecem só às pessoas extraordinárias. Acontecem todos os dias às pessoas comuns. Tinha vindo trabalhar para ali há pouco tempo e todos dias evitava responder à pergunta (muda e retórica) que ele continuava a colocar com o seu corpo cada vez que entrava numa sala. Mas registou, sem querer, que ele tinha uma figura agradável.
Eles conheceram-se. Partilhavam um grupo de amigos que jantavam todas as semanas. Era um grupo divertido, jovem, inconsequente, de pessoas que se encontravam ali de passagem, que travaram conhecimento, descobriram afinidades e cheios de vida começaram a partilhá-la muito naturalmente uns com os outros. Ele e ela conviviam com eles, diluídos naquela mole restrita. Eram dias felizes, eram bons momentos e todos se acreditavam até amigos.
Um dia, ele que procurava uma mulher, oh, sim, ele queria muito encontrar com quem partilhar a sua vida ainda jovem, ainda bonito, mas já pronto para... Não havia naquele desejo cinismo, nem oportunismo. Não havia calculismo, não havia fingimento. Ele estava pronto para se dar e crente de que valia a pena que alguém o recebesse. Naqueles jantares foi reparando nela. Como naquelas piadas que nos lembram que não devemos pôr os nossos desejos demasiado acima das possibilidades de os realizarmos, ele sabia que ela poderia ser sua, porque não era a mais bonita do grupo, nem a mais divertida, nem a mais atraente. Ela não era ideal, graças a Deus, porque o Ideal fica muito longe e as nossas mãos nem sempre o alcançam. Ela era só a mais delicada, a mais educada, poderíamos dizer, tinha uma graça que era feita da sua verticalidade, assertividade e retidão, sem ser feia, nem gorda, nem ter marcas no rosto. Tudo nela era equilibrado. E ele fixou-se nela e quis tê-la e que ela o tivesse. Era genuíno e sincero.
Um dia, falou-lhe dos seus sentimentos. Tocou-lhe nas mãos. O momento foi propiciatório. Estava escuro e frio e os corpos quentes (mas a perder temperatura) eram atraídos para outros corpos quentes, tentando juntos manter a temperatura. Era bom enlaçar as mãos, que estavam quentes. Era bom abraçar um corpo que estava quente. Era bom ouvir palavras sentidas. Era bom dizer que sim, sem se saber ainda bem se era sim o que se queria dizer. Estava-se bem e, secretamente, quase sem o dizerem a si mesmos, eles deram-se um ao outro e sentiram-se felizes com isso.
Mas não queriam perturbar o grupo, constrangê-los com um amor que nascia, incomodá-los com mãos enlaçadas e intimidades, por isso mantiveram-no em segredo. E podia ser uma história feliz...