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Livros para adiar o fim do mundo

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

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Livros para adiar o fim do mundo

15
Jun14

Uma História feliz (II)

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     Nos jantares seguintes, quando o grupo se entregava aos jogos de salão de que tanto gostavam, ele - é que ele estava tão feliz - não se continha dentro dele, transbordava de otimismo e de alegria, dizia piadas de que todos se riam muito e ele ria mais do que todos da sua própria graça, enquanto olhava para ela pelo canto do olho. Ela tinha sempre um sobressalto, como quem se assusta com a presença de alguém ao seu lado sem estar à espera. Naqueles momentos, quase embaraçosos, ela baixava os olhos e ria sem abrir os lábios, limitava-se a desenhar a linha do sorriso nos seus lábios, sem nunca participar nas gargalhadas altas à sua volta. Dentro de si agitava-se um incómodo, mas não poderia pedir-lhe que ele serenasse, que ele regressasse à sua medida. A pergunta que até ali ele colocava discretamente: "repararam que eu cheguei?", passou a ser um grito que impunha a sua presença mesmo àqueles que estavam distraídos: "estou aqui e transbordo de felicidade!". Ele tornara-se mais assertivo, mais incisivo. Que coisa! E agora, onde ia ela encontrar as palavras certas para lhe dizer que ele era como um rio que galgara as margens e que era preciso que recuasse e que voltasse a estreitar-se no seu leito? Mas as palavras não vinham e outra noite de amigos se passava assim, ele mais exuberante, eufórico, mas menos estridente do que ela pensava, ela cada vez mais apagada, incomodada, sentindo quase vergonha por ele. Os amigos não repararam, gostavam da alegria dele e puxavam pela discrição dela. Nem sequer chegaram a ponto de se perguntarem o que se passava com eles. Atribuíram todas as diferenças à maior empatia que se ia cimentando no grupo, as noites que passavam juntos eram cada vez mais divertidas, nunca se falava de coisas muito sérias, tudo eram risos que se perdiam no ar.
    Naqueles dias, ela começou a andar mais atormentada e passou a fugir um bocadinho dele. Deu as desculpas oportunas, muito trabalho, cansaço, dor de cabeça, mais trabalho e  mais cansaço e já não havia como fugir mais. Estiveram juntos, só os dois, quando não pôde fugir mais sem que parecesse rude, e aquela ânsia acalmou um pouco, ele não lhe tinha parecido tão agitado, acompanhou-a a casa, conversaram superficialmente de assuntos que não seria capaz de precisar e tinha sido agradável. Mas depois de ele ter ido embora, ficou-lhe no ventre um constrangimento que a fazia infeliz, um nervoso miudinho e, em espanto, descobriu nela que o rejeitava, que ele não era aquilo que ela procurava, que não queria e não podia mais. Teria que lho dizer, teria que ser honesta com ele e com ela, mas como? como feri-lo quando ele se mostrava tão bem junto dela, quando sentia que ele a queria tanto, lhe queria muitíssimo? Logo ela que evitava por todos os meios ferir quem quer que fosse. Como é que se via naquela situação?  
     No jantar da semana seguinte, os acontecimentos precipitaram-se. a sua agonia tornou-se insuportável, o pathos dele era inevitável, a tragédia desenhava-se, sem catarse. Naquela noite, ele estava realmente efusivo. A sua voz sobrepunha-se a todo as as outras. Parecia que ninguém terminava uma frase sem que ele interrompesse e com umas observações que deixavam todos os outros uns instantes boquiabertos, antes de se rirem com satisfação. Tinha que ser justa ninguém parecia aborrecido, não surpreendia nenhuma troca de olhares suspeita. Ninguém parecia chocado com as coisas que ele ia dizendo. De repente, a noite de amigos tinha-se tornado um monólogo. Era só ele que falava, a resposta àquilo que dizia eram as sonoras gargalhadas que os cercavam como uma nuvem de fumo. A primavera ia quente, as janelas estavam abertas e as pessoas que passassem na rua poderiam testemunhar aqueles momentos de diversão. Enquanto se ia rindo sem abrir os lábios - era muito raro que soltasse uma gargalhada - deu por si a comparar aquele jantar a uma encenação burlesca, e já não conseguia deixar de o ver como um bobo - sim, estava a ser cruel, mas a semelhança imprimira-se no seu espírito e não conseguia esbatê-la. One man show, a sit down comedy em lugar da stand up comedy. Não, não,ela não poderia ser a mulher de um ator, ainda que de um ator amador, ainda que de um homem agradável com especiais dotes histriónicos. Isto decidiu-a. Era demais para ela. Tinha que pôr fim àquela história feliz que só ele estava a viver. 

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