Dou hoje continuação a este post, de novo levada por esta ideia de que, a determinada memória, ficou para sempre ligado o livro que me acompanhava na altura. Já "entrei" na faculdade e houve uma espécie de epifania, primeiro que as leituras podiam ser orientadas, obedecendo a critérios e a objetivos, mais não fosse para fazer cadeiras com sucesso; segundo a descoberta de que os leitores funcionavam também como comunidade, uma rede social, antes das redes sociais.
1. A cadeira de Introdução aos estudos literários foi uma surpresa. Uma vez que ia tirar uma licenciatura em Línguas e Humanidades - Variante Estudos Portugueses, imaginei quatro anos da minha vida a ler e a conhecer a literatura portuguesa. Assim, a primeira leitura que tive de fazer foi nada mais nada menos que O Nome da Rosa, de Umberto Eco, e logo depois o opúsculo Porquê o Nome da Rosa e A Biblioteca, também de Eco. Mas foi também a fase de Jorge de Sena, o dos contos. O Físico Prodigioso é parente muito chegado de A Fada Oriana. Para sempre ficou o fascínio pela Idade Média, anos mais tarde revisitado por outro livro que ficou para sempre, Os Pilares da Terra, de Ken Follett. Mas também a crueza e a dureza dos contos de Os Grãos-capitães ou de Antigas e Novas andanças do Demónio. Li completamente fascinada e siderada "Super Flumina Babylonis", cujo título remete logo para a canção de Camões "Sobolos Rios de Babilónia" e que ficciona os últimos dias da vida de Camões, pobre, doente, amargurado, como sabemos que terminou os seus dias. Mas o conto é uma homenagem sentida, apaixonada ao nosso poeta maior. Quanto mais conhecermos a sua obra melhor leremos o conto. Mas também pode ser o inverso, a leitura do conto pode muito bm funcionar como pretexto para (re)conhecer a canção e outros poemas de Camões. Recomendo muito a leitura de Jorge de Sena. Apetece-me largar o que estou a fazer e ir ali matar saudades desta prosa virtuosa.
2. O segundo ano aprofundou o meu fascínio pela Idade Média e, desta vez, através dos textos medievais. O encanto com que estudei a lírica peninsular. A delicadeza das cantigas de amigo, muito, muito mais do que as cantigas de amor, A Dama Pé de Cabra, Melusina, só a musicalidade deste nome, do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. Depois a descoberta de A Demanda do Santo Graal, numa edição da INCM, lida integralmente em Português medieval. Que aventura maravilhosa. Aqueles heróis que deram origem ao desejo de ler tudo o que houvesse para ler sobre as lendas do Rei Artur: Galaaz, Lancelot, Artur, Merlim, a rainha Genebra e não a hollyoodesca Guinevere, claro muito mais apagada pela moral cristão. Daqui fui para os quatro volumes de As Brumas de Avalon, de Colleen Mccullough. Rendi-me totalmente a estes quatro livros, já os li três vezes na minha vida e nunca me cansei. Ainda não me libertei do choque de que Artur e Morgaine fossem irmãos, eles amavam-se tanto. Depois a recriação dos mitos e rituais druídicos, a Deusa, o poder feminino, o apego à terra e à natureza, Avalon, a barca, o crescimento do cristianismo, Artur dividido entre dois mundo e duas religiões, os mistérios... (suspiro nostálgico).
3. O terceiro ano foi o ano da descoberta da literatura lusófona, em especial a africana. Fiquei de Cabo Verde, por causa de A Vida e Morte de João Cabafume, Chuva Braba, de Manuel Lopes, que me ajudou a perceber o conceito de êxodo e porque é que a emigração é tão elevada em Cabo Verde. Continuo a querer tanto ir lá. Mais tarde, foi ainda a descoberta de Germano de Almeida e do seu livro Dois Irmãos, que equaciona exemplarmente o choque entre a modernidade e os valores tradiconais na sociedade, sendo que a pressão da tradição é por vezes de um peso desmedido e nos devolve à história bíblica e primordial de Caim e Abel. No início, fui muito mais de África do que do Brasil, as vozes africanas, entre elas o soberbo Terra Sonâmbula, do hoje muito aclamado Mia Couto, ainda num período de menos fama e demais autenticiade (Nota à margem, desde O Pranto da leoa - de que não gostei - não voltei a Mia Couto) cativaram-me muito mais. Daí que alguns anos mais tarde me tenha candidatado a um mestrado, pensando que seria em Africanas e que acabou por ser em Literatura Brasileira. Os anos de faculdade foram ainda da descoberta desse evento anual que passei a viver assiduamente: A Feira do Livro!
4. Não sei se foi no 4º ano, mas nesse tempo as leituras não eram só as impostos pela faculdade. Li tudo o que havia para ler de Gabriel García Marquez, tudo desde Cem anos de Solidão e percebi que havia algo de mágico naquela escrita antes de conhecer o termo realismo mágico. Crónica de uma morte anunciada, O Outono do Patriarca, Olhos de cão azul, A revoada, Amor nos tempos de cólera, O general no seu labirinto e, nos anos que se seguiram, todos os títulos que iam saindo. Eu amo García Márquez, eu venero-o, sobretudo depois de conhecer uma pequena história: parece que, no momento de enviar o manuscrito de Cem anos de Solidão para a editora, o escritor gastou tudo o que tinha, além de o ter de fazer por duas vezes. Quando finalmente conseguiram fazer o envio, a sua mulher ter-lhe-á perguntado "E agora, Gabo, se o livro não presta?". Prestava sim, ainda hoje presta, e levou-o pelo menos ao Prémio Nobel. Há investimentos que valem a pena! Também desta altura é o extraordinário A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera, tinha de ser, tinha de estar no currículo, também gosto tanto deste livro e o conhecimento de que a leveza pode ser insustentável foi uma das revelações mais importantes para a minha formação, visto que a ela regressei e regresso em tantas fases da minha vida.
5. Nestes anos, havia dois colegas da residência universitária onde vivia que dominavam muito bem a arte de "conseguir livros gratuitamente" na feira do livro e que me conseguiram alguns dessa forma, que eu guardo com carinho e nostalgia. Partilhávamos leituras e à conta deles descobri Dostóievski e Henry Miller.
6. Quem me mandou a mim começar esta tarefa interminável? Mas agora não posso desistir. Tenho de concluir o mural... portanto, CONTINUA.