Género: não sei bem!
Páginas:344
Editora: Cavalo de Ferro (Graças, senhor, por esta editora)
Para Guardar
"Nada nos assusta tanto quanto a confusão";
"Quem não se adapta está sempre errado";
"Choramos porque a linguagem é imperfeita" - candidato a máxima de vida;
"É por isso que o mar faz de nós homens"
Começo pelo mais óbvio: QUE LIVRO!!
Os peixes não têm pés é um livro que namorei desde o ano passado. Mas, infelizmente, os livros não são de graça, pelo que tive de esperar, não até ter dinheiro, que isso é condição que não passa de ficção, mas até ter coragem de o gastar. Conhecia o autor da absolutamente fantástica e maravilhosa trilogia: Paraíso e Inferno, A tristeza dos Anjos, Coração do Homem , que recomendo com a mesma convicção. Este novo livro do autor não desilude, mantém o nível bem elevado da escrita, a mesma nostalgia, o mesmo discurso entre o coloquial e o reflexivo, sem que o narrador se coiba de mostrar a sua presença pelos comentários que tece, pela forma como se funde com o espírito das personagens que descreve.
Estas páginas tentam - e conseguem - responder a uma questão que atravessa toda a obra: que significa ser islandês? Parece que significa a capacidade de viver num clima mais do que inóspito, em paisagens quase lunares, batidas pelo vento, pela neve, pelo frio glacial, pelo mar - omnipresente e com o qual os homens se identificam, se cumprem, se afirmam, ainda que nele possam naufragar. Na verdade, a paisagem islandesa está lá sempre como pano de fundo, os fiordes, as montanhas, a costa, os promontórios, as "facadas do vento norte". Além de viver na Islândia, os islandeses vivem do mar, aliás todo o tecido económico parece depender do mar e do processamento do peixe, quase se sente o cheiro da seca do peixe, o frio das fábricas, o desespero de uma população que parece condenada a viver no rés da vida, dependente de leis económicas que não conhece, mas que condicionam o seu dia a dia.
A ação está intimamente relacionada com os ciclos económicos da Islândia, cujo desenlace chegou a fazer as manchetes dos jornais internacionais "quando a economia foi pelo ralo abaixo". A esta portuguesa que vos escreve, a Islândia sempre pareceu um país quase perfeito, mas, segundo a perspetiva deste autor, afinal não. Perpassa pelas páginas do livro toda uma análise política e económica, perspetivada a partir das classes mais baixas da sociedade, a quem resta sentir os efeitos, sem conhecer abosutamente as causas. Há uma clara intencionalidade crítica na denúncia do poder do dinheiro, da ambição desmedida, da selvajaria do capitalismo, da dependência da Islândia dos países vizinhos e do suspeito do costume, dos EUA, que mantiveram aí bases militares.
As personagens de Stefánsson são sempre marcadas pela estranheza, são marginais, porque não se encaixam, porque não se daptam e, no entanto, são sublimes, épicas, grandes quando reduzidas à sua condição humana, frágeis, sonhadoras, crentes. Aquilo que, a maior parte das vezes, a sdisitngue é o amor pelos livros, a crença na poesia, a necessidade da arte, em especial a música. Todas parecem tocadas pelo onírico, pela fome do absoluto, pela vontade de se desprenderam das limitações humanas, aspirando a realizaçãoes que são etéreas e impalpáveis, muitas vezes explicadas pelo facto de lerem, o que as torna motivo de desprezo por parte dos outros. São também capazes de viver o amor de forma absoluta, arrebatada, intensa. No entanto, o amor também pode pode sofrer a erosão do tempo, também decai, diminui, se apaga, se desilude e, por fim, faz sofrer.
Outro aspeto que se mantém desde os livros anteriores é a abordagem da questão de género. As mulheres são objeto de papéis bem demarcados, não muito longe do gineceu grego, devem dedicar-se aos maridos, aos filhos ao lar, guardar decoro, agirem de acordo com o guião social e dele nnca se afastarem sob pena de serem ostracizadas, relegadas, violentadas, ao mesmo tempo que expõem ao ridículo so seus homens.
E os livros, tão omnipresentes como o mar, o vento ou a neve. Os protagonistas destas histórias leem sempre, o livro ora como objeto estranho, ora como preciosidade, ora até como motivo de morte.
Apetece-me pedir-vos, por favor, que leiam este livro. É tão bonito! a linguagem é tão sensitiva, tão bela, tão poética, tão concreta na sua abstação. É um livro maravilhoso, reflexivo, atual, poderoso, triste, autêntico... já tinha dito atual?
Ah, gostava tanto de ir à Islândia...