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Livros para adiar o fim do mundo

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Livros para adiar o fim do mundo

26
Mar20

#14/2020 - Lá, onde o vento chora, Delia Ownes - é o isolamento, senhor.

livrosparaadiarofimdomundo

Wook.pt - Lá, onde o vento chora

 

Editora: Porto Editora

Páginas: 392

Só para vos dizer que ler este livro é estar ao nível de Hollywood. Para quem precisa de motivação para a leitura, sempre significa um outro nível. Digo isto, porque o livro foi recomendado pela Reese Witherspoon. Eu gosto da Reesezinha. Muito. Ela é muito boa atriz, versátil, que é uma qualidade que eu aprecio. Para coroar esta princesa, ela gosta de ler. Ela tem uma conta no Instagram dedicadaaos livros. Podem seguir. Eu não sigo, porque sou pouca dada ao Insta.

Esta foi a primeira leitura que consegui terminar nesta fase do isolamento social. Por causa do isolamento, a história assumiu todo um sgnificado novo. A ação centra-se numa criança, Kya, a quem todos vão abandonando. O livro abre com a partida da mãe. Kya vive em isolamento social, por causa do preconceito, por causa da solidão, por causa de ter de sobreviver. O seu isolamento terá consequências trágicas, mas também lá está a esperança, a aprendizagem, a resiliência e o amor. Tudo ingredientes de que precisamos para temperar a nossa nova (a)normalidade.

Em minha opinião, há uma outra personagem que se desenha por detrás de Kya, erguendo-se e protegendo-a. A natureza, a paisagem grandiosa, exuberante, riquíssima do Pantanal da Carolina do Norte. É a natureza que acolhe Kya, que a protege, que a nutre, que a cria, que a ensina, que a prepara. A autora está nas entrelinhas, a sua formação na área da biologia confere às imagens uma particularidade e uma atenção que um leigo não conseguiria. Kya torna-se uma bióloga capaz de se candidatar a um reconhecimento de competências, porque o seu é um saber prático, enraizado na experiência quotidiana da observação e da luta pela sobrevivência. Está longe de ser uma crinça lobo, mas é, de facto, a Natureza que é a sua mãe.

Por estes dias, muito se tem falado do Planeta que respira, da redução da poluição por causa do nosso isolamento forçado, que a vida nunca voltará a ser a mesma, que aprenderemos a priorizar o que é realmente importante. Este romance pode servir como manual de instruções. Não será, talvez, necessário ser tão radical, mas podemos sempre harmonizarmo-nos mais com a natureza.

Fora tudo isto, que agora, parece que tudo vai desaguar ao mesmo estuário de preocupações, privem com este livro, é diferente, está bem escrito, a história está bem arquitetado, tem um picozinho de mistério e é comovente.

 

26
Mar20

Apontamentos para um diário de COVida#3

livrosparaadiarofimdomundo

Levantar pela manhã, obrigar o cérebro a perceber que horas são, em que dia da semana estamos. Uns dias com energia, outros impelidos pela força do teletrabalho.

Pequeno-almoço, pode ser com calma, afinal o dia de trabalhou-se espraiou-se (imagem de uma vaga de espuma branca a espraiar-se, saudades da praia, do sal e do sol, de mergulhar no veludo da água)

Teletrabalho. Devia ser com menos stress, mas não é. Medo de falhar, medo de não dar conta. Medo do correio eletrónico que também se comporta como vagas de espuma branca na praia... pensando melhor é mais tsunami.

Resistir ao vício do trabalho. Ainda assim, as tarefas domésticas começaram a gritar connosco. O cesto da roupa está vazio. Hiperventilamos se uma peça está por engomar. A cama feita todos os dias. A roupa pendurada. O fogão limpo. A cozinha limpa e arrumada. Depois do pequeno-almoço, para facilitar, despeja-se a máquina e arruma-se logo a loiça do pequeno-almoço. Tiques obsessivos. Diz que é importante cuidarmos da saúde mental. Para isso, podemos contar com os filhos, desorganizam num instante a nossa organização obsessiva. Ainda bem que há quem cuide nós.

Teletrabalho, outra vez. Uma lista de tarefas. Meu Deus, tanta coisa! Não sei se vou conseguir. Começar. Limpar os itens da lista. O dia está a esvanecer-se a lista ainda não. Sobram duas tarefas. Já volto. Tenho de acudir a outro lado.

Teletrabalho. Uma aula. Hoje o som funcionou mal. Estive em pânico por eles. Não gosto desta coisa a tele. Dei o meu melhor. Eles sorriram, às vezes. Encurtei o tempo, distribui tarefas. Os meus heróis por estes dias. Fizeram. Estiveram. cumpriram a parte deles. Não os posso dececionar, nem deixar cair. Tenho de os escorar nesta vida de ficção. Ainda parece um sonho.

Estava sol. Levei a cadeira para fora e o livro. Li cinquenta páginas. Estava na lista. O maior gosto que tenho na vida descurado. Não tenho tempo. Esta ironia. Mas li, por causa da saúde mental. Menos um item na minha lista. Vai ser um dia bom.

A lista vai espelhando o meu receio de desconcertação. Pus lá: sopa, caminhada, estender roupa, apanhar roupa, passar a ferro, leitura, escrever no blog. Às vezes cumpro tudo.

Jantar. As refeições tornaram-se pouco organizadas. Cada um vai à cozinha e serve-se em regime de take away, para o computador, a vida deles também a funcionar a distância. 

Às vezes, há risos, piadas e correrias. Deve ser por causa da saúde mental.

Teletrabalho. Há agora uma quitude. Um deles parece que ficou de férias. Que bom. O Outro comporta-se como se estivesse de férias. Não está. É o semestre. Mais um prega de preocupação. A saúde mental nunca mais se alisa.

Teletrabalho. Ainda consigo fazer mais duas ou três coisas. Também por causa da saúde mental.

Ler antes de dormir.

Insónia às 04:00 por causa do teletrabalho.

 

 

24
Mar20

Apontamentos para um diário de COVida#2

livrosparaadiarofimdomundo

Sim, também eu estou em teletrabalho!

Declaração de interesses: sou professora, com muito orgulho. Ensinar, dar aulas, orientar alunos, o que lhe quiserem chamar, é mesmo o que eu gosto de fazer. 

O COVID-19 separou-me dos meus meninos (a verdade é que são alunos do 12º ano), mas são os meus meninos. Estão num ano decisivo das suas vidas e, de repente, ficaram sem chão.

No último dia em que estive com eles, presencialmente, uma das minhas meninas chorava copiosamente, não consegui consolá-la. Tinha tanta razão, pertencem à geração que fez exames do 4º ano, exames do 6º ano, provas de aferição, Decreto- Lei 55... e o COVID-19. Dizia-me que trabalhou tanto para poder ir à viagem de finalistas, tinham tantas expetativas e, ainda por cima, o teste de Matemática tinha corrido mal. Afastei-me dela também com lágrimas nos olhos.

É tempo de teletrabalho e, depois de os meus meninos terem terminado um trabalho que já estavam a fazer, hoje arriscamos uma aula por videoconferência através do ZOOM. Que bom foi vê-los, mesmo à distância, ouvi-los, brincar com eles. Eram vinte e sete na minha "sala de aula", atentos, interessados. Estivemos os 90 minutos a que tínhamos direito a trabalhar em conjunto. Revimos matéria, trocámos impressões, leram, fizemos exercícios.

Hoje, os meus heróis foram eles. Não consegui deixar de exclamar no fim: "Gosto mesmo de vós".

Hoje, o teletrabalho, devolveu-me um pálido reflexo da minha sala de aula, ainda ssim tão precioso.

Vai-te daqui, COVID-19. 

23
Mar20

O amor nos tempos de cólera, Gabriel García Márquez

livrosparaadiarofimdomundo

Wook.pt - O Amor nos Tempos de Cólera

Editora: Dom Quixote

Páginas: 397

Declaração de interesses: eu amo a escrita de Gabriel García Márquez. Tudo. Tudo. Li dele tudo o que foi publicado em língua portuguesa e nunc ame arrependi e nunca me cansei. É por causa de García Márquez que não amei Isabel Allende. Quem leu, primeiro, Cem Anos de Solidão, quem contacta com o fôlego das frases do mágico, não pode deixar de considerar A casa dos Espíritos um arremedeo. Desculpem, foi isto que ue senti e li muita coisa de Allende, muita mesmo.

Lembrei-me deste livro (note to self, a reler) a propósito dos tempos estranhos que vivemos. Sem querer estragar-vos a surpresa da leitura, há no final do livro uma situação em que a vida imita a literatura e, nessa imitação, oferece-nos uma visão dos tempos de cólera como tempos de amor.

É isso que recordo do livro. O isoalmento, a impossibilidade, o confinamento, como uma trégua da vida, como uma nuvem onde alguém se encerra para viver o amor, finalmente o amor.

Vale a pena ler o livro. Precisamos de lições, de pedagogia para superarmos esta realidade que, numa imagem brutal, o primeiro Ministro hoje metaforizou em tsunami... e a onda ainda está a crescer. Vale a pena estudar a resiliência.

Depois, é Gabrel García Márquez, quase podia ter só colocado a imagem do livro. 

20
Mar20

Apontamentos para um diário de COVida

livrosparaadiarofimdomundo

Vou fazer um diário positivo!

Pela primeira vez na vida, tomei um antibiótico até ao fim. Estou muito orgulhosa. É certo que acabei por não tomar sempre à mesma hora, mas acho que mereço pontos pelo empenho... e pela participação... e por ter ido até ao fim, sem desistir.

A nossa estranha forma de COVida tem sido uma oportunidade de aprendizagem. Ontem, quase entrei em pânico. Toda a gente sabe que a nossa preocupação hoje em dia são duas: não apanhar o maldito do vírus que parece Deus, é omnipresente e, se não ficarmos em casa, é omnipotente, e abastecer a despensa. Começo a acreditar que a segunda preocupação supera a primeira. Uma pessoa quase é levada a pensar que, se os sintomas forem leves, vale a pena um contágiozinho se conseguirmos comprar comida. 

Na semana passada, senti-me mesmo inteligente. Fui ao sítio (sítio, porque eu sou portuguesa) do Continente e descobri que, na zona, existia essa coisa maravilhosa chamada Click e Go. Enchi o meu carrinho sentadinha no sofá, sem máscara, sem luvas, sem distância social e, voilá, compras para duas semanas. Depois foi só enviar o homem da casa numa missão quase suicida à loja física. Eu e as crias ficámos em casa a rezar "para que volte cedo e bem". E ele voltou... e eu pensei que o problema estaria resolvido até dia 27, pelo menos. Era o dia 15 de março do ano da Graça do Senhor de 2020. Pensei eu, pensei, mas pensei mal. Há evidências científicas que o vírus, ou os filhos a tempo inteiro em casa, desintegram os mantimentos da despensa. Acreditem ou não, no dia 18 - leram bem - no dia 18 o frigorífico estava vazio e havia um sentimento de revolta cuja palavra de ordem era "Não há nada em casa para comer".  Cheia de medo de ser sequestrada se não arranjasse comida, voltei ao mesmo sítio - loja virtual, blá, blá, encher carrinho, isto nem é difícil, ah e tal compras, compras, compras, pagar e sair. Em verdadeiro terror, descobri que, das dezenas de euros que eu estava disposta a gastar, só havia mantimentos para dezoito euros. Eu ia ser chacinada! E, sinceramente, uma pessoa aceitou esta ceninha do isolamento para fazer tudo à distância, se assim não for, vou cancelar a inscrição.

Foi então que me lembrei que o Intermarché - eu nem sei se posso dizer estes nomes, mas ninguém me paga nada, devo poder - também fazia atendimento online e mais, a entrega era em Drive, sm, como o MacDonald´s - outro nome, bolas - e tinham tudo o que eu precisava. Quase chorei e fiz as compras e vou levantá-las amanhã... se tudo correr bem. Hoje o jantar foi uma receita italiana Pasta all aglio - é basicamente esparguete com azeite e alho, mas o nome italiano dá-lhe outro charme e os esfomeados cá de casa gostam muito. Começa a haver diálogos que passam pela acusação de quem comeu mais, há alguma tendência para informadores e tudo.

Faltava outro setor importante: frutas e legumes. Armada de grande espírito de sacrifício, quando regressava do trabalho - que só foi à distância, porque o meu local de trabalho fica a dezoito quilómetros de casa - dizia eu, eis que paro à frente da frutaria, eram 18:20. Adivinhem? por causa do COV-raios-o-partam o horário foi alterado, encerrava às dezoito! E agora? Nem a velhinha sopa ia conseguir fazer. Ainda por cima o aviso dizia que só eram permitidas duas pessoas no estabelecimento. Amanhã a fila deve ser pior do que a que haveria para comprar bilhetes para o espetáculo dos Coldplay, como acontecia dantes, antes deste fim do mundo.

Mas - e é por isto que este é um diário positivo - lembrei-me de alguém ter dito que uma senhora do mercado aceitava encomendas e fazia entregas ao domicílio. Há pessoas assim, que conseguem avistar os nichos de mercado. Recorrendo aos meus contactos, uma chamada telefónica, uma mensagem de texto e amanhã o produto será entregue por volta das 15:00 à porta. Deus existe e também é omnipotente!

De maneiras que não sei como é que está a dívida pública, desconheço as projeções das eleições em França, não sei que filmes estrearam, não sei onde fica nenhuma livraria, nem espetáculo de rua... bolas, esqueci-me que estas coisas não existem!! Mas estou tranquila. Desta vez tenho a certeza que comprei comida para duas semanas.

Bolas, esqueci-me de encomendar papel higiénico!

 

19
Mar20

História de uma serva, Margaret Atwood - das distopias, senhor

livrosparaadiarofimdomundo

A História de Uma Serva

Editora: Bertrand Editora

Páginas: 240

 

O nosso quotidiano tornou-se uma distopia. Isolados em nossas casas, nem sequer precisamos de outra força para nos controlar que não seja o medo, um medo insidioso, o de tocarmos as pessoas que amamos. Temo-los connosco e, para os proteger, ficamos longe, hiperventilamos se nos tocamos e, ainda há pouco mais de uma semana, vivíamos tão longe desta forma de vida, como se pode estar de um planeta distante. De repente, a nossa fragilidade materializou-se e, face a essa evidência, respiramos em haustos contidos, superficiais.

Tivemos vislumbres desta distopia em obras que a elas se dedicaram, visionárias, colocando hipóteses, criando virtualmente cenários que, hoje, nos parecem o teatro onde representamos um papel para o qal não tivemos tempo de ensaiar.

A História de Uma Serva, de Margaret Atwood é uma dessas obras. A Terra é varrida por catástrofes ambientais que colocam a sobrevivência da espécie humana em risco, sobretudo porque é a fertilidade que é afetada. Face à necessidade de salvar a humanidade, há sempre uma força que se torna dominante e a maioria que é dominada. Para preservar a humanidade, opta-se por uma regressão de índole religiosa, de inspiração bíblica, mas do Velho Testamento, e a sociedade torna-se de novo (de novo?) patriarcal. A mulher, em especial se pertencer à categoria das servas, vive confinada e em função da procriação, o valor da sua vida é avaliado em função da sua capacidade de procriar. 

Claro que esta sociedade totalitária é um verdadero abismo. A heróina vive no esforço de disfarçar os seus pensamentos de rebeldia, ao mesmo tempo que procura capitalizar a menor possibilidade de melhorar os seus dias, nem que seja combatendo a desidratação da pele - obviamente para  uma fêmea criadeira os tratamentos estéticos não estão na ordem das prioridades - com parte da manteiga das suas refeições. Um bocadinho de spoiler, vá... Por outro lado, a sabedoria antiga há muito que nos ensinou que por trás da virtude pública não pode deixar de grassar o vício privado. Apesar da vida se orientar pelas Sagradas Escrituras, isso não impede que o desejo sexual, de luxo, de poder, de toda a espécie de prazeres não persista que a classe dominante não o satisfaça.

É mais uma obra literária que nos lembra a nossa fragilidade, mas acima de tudo a fragilidade da civilização que construímos e que, enganadoramente, a nós cidadãos da Europa, nos aprece tão sólida. Séculos de civilização e de cultura não chegaram para nos afastar dos instintos mais primitivos. Somos crianças que ignoram avisos. Vale a pena pensar nisto.

Sei que existe a adapatação para uma série televisiva. gostei tanto do livro que fui a correr ver a serie. Senti uma indignação tremenda. Nada a ver! Nada a ver! nem consegui ver o primeiro episódio até ao fim e nem vou voltar a tentar.

Fica a sugestão, não é a mais animadora, mas talvez seja a que precisamos, como aviso.

Fique em casa. Leia o livro.

17
Mar20

Post sem livros lá dentro - isolamento social e teletrabalho

livrosparaadiarofimdomundo

Hoje fiquei em casa, a trabalhar à distância.

Não fossem as circunstâncias que ditaram estas circunstâncias, teria sido a realização de um sonho.

Diz-se, e bem, que vivemos quase um cenário de guerra. O nosos inimigo é silencioso e invisível, mas eficaz. Ainda assim, a forma de combatermos esta guerra não é a pior. Daí que tenha, durante todo o dia, tentado encarar as coisas pelo lado positivo.

Filhos em casa, protegidos, seguros, pelo menos até decorrerem 14 dias e se o pai e a mãe, quando saírem, observarem todos os procedimentos de sgurança.

Temos papel higiénico! (não resisti).

Tomar o pequeno-almoço de pijama.

Estar com os filhos - ao contrário dos piores cenários - tem sido uma co-vivência tranquila, doce e muito divertida. A net e o filão inesgotável do humor tecido à volta desta pandemia têm sido preciosas.

Poder trabalhar. Saber que temos obrigações, prazos a cumprir, que há pessoas à nossa espera e poder fazê-lo em segurança é um privilégio!

Fazer uma caminhada - obsevando a distância social, cruzei-me com cino desconhecidos - ainda com a luz do sol. Sentir o calor no rosto, sentir a paz.

Tomar um banho à chegada a casa e vestir roupa lavada e as endomorfinas disseram ao meu cérebro que eu tinha ido à praia e eu não as desmenti.

Como cuidados de beleza, apenas operações de manutenção: limpeza e hidratação. Mesmo assim, passei creme pelo corpo, operação que, muitas vezes, às 07:00 da manhã era assegurada com o pensamento: ponho amanhã.

Cabelos como Deus quiser. Que bom. Não preciso de tentar adivinhar se os outros ao olharem para mim estão a pensar como eu que o meu cabelo é um "nojo".

O sítio onde vivo respira uma atmosfera como se fosse agosto e toda a gente tivesse saído para parte incerta. Ainda tive de franzir a testa quando passei pelo único café teimosamente aberto, onde conviviam pacificamente uma dezena de pessoas. Irresponsáveis!

Casa arrumada. Roupa passada. Cesto de roupa vazio. Isto é absolutamente inédito.

Há muita coisa boa nisto tudo. É uma questão de perspetiva. Se é isto que me é pedido. Contem comigo.

Há só um pensamento insidioso que me perturba: pensar na aflição daqueles a quem foi diganostico o vírus, os seus familiares. Os médicos e pessoal de saúde a lutarem pela vida de alguém que não consegue respirar. Os nossos governantes a quem, desde que nos lembramos, nunca tanto foi pedido.

E, ao contrário, do que acontece nos dias de rotinas militares, ainda não acertei os ponteiros com a leitura. Me aguardem.

 

 

16
Mar20

#13/2020 - O meu amor absoluto, Gabriel Tallent, ler pode doer (muito)

livrosparaadiarofimdomundo

Wook.pt - O Meu Amor Absoluto

Editora: Relógio d' Água

Páginas: 347

Este livro tem sido o motivo pelo qual não tenho escrito de forma tão assídua no blog. Porque custa, custa muito e, no entanto, é crucial escrever sobre este livro e recomendá-lo.

Comecemos pelos paratextos. O título não é, como poderá parecer enganador, é, na verdade, bastante explícito sobre o conteúdo. Só que não da forma como imaginaríamos. Daí que a leitura e a verdade do título seja como um murro no estômago. Aqui pensei em não dizer isto, com receio de afastar potenciais leitores, mas fica assim como um penso rápido que é preciso arrancar sem contemplações. Esta leitura é como um murro no estômago, não uma, mas várias vezes. Já o texto da contracapa revela-nos que se trata da obra de estreia de Gabriel Tallent e... o trocadilho com o nome impõe-se. Gabriel é um talento na escrita. Uma revelação a acompanhar atentatamente. Tomemos nota.

A relação do leitor com este romance é um bocadinho o reflexo da relação que Turtle, a personagem feminina, de 14 anos, mantém com Martin: somos brutalizados pelas descrições, a violência das descrições apanha-nos tantas vezes desprevenidos como Turtle perante Martin. Ainda assim, defendemos este livro e recomendamo-lo muito. É minha convicção que a arte, a literatura, não tem de ser panaceia. O objeto artístico tem como primeira função interpelar-nos, incomodar-nos e este O meu amor absoluto cumpre com excelência esse papel. Com disse, de maneira muito feliz, a amiga que mo emprestou "É um livro que nos persegue". É verdade! Às vezes, lemos livros que apenas nos passaram pelas mãos, de que mais tarde apenas lembraremos o título na nossa enciclopédia pessoal. Mas este não, este fica gravado e, se me pedissem, seria capaz de recontar toda a história e até falar da impressão com que se fica desta leitura.

Da leitura fica uma forte impressão de silêncio, o silêncio das vítimas. Todo o texto é profundamente introspetivo. Mergulhamos a fundo no espírito de Turtle, testemunhando catarticamente a forma como a violência a moldou e a preparou para enfim a superar. Depois temos a natureza, exuberante, selvagem, pletórica que cerca as personagens de cor, de vida, de veneno, de emaranhados, de fungos. Toda a diversidade da natureza há de ali estar como reflexo do que o livro nos pretende ensinar. A omnipresença das armas, a forma simbólica como o cuidado com as armas constitui uma aprendizagem para cuidar de outros. O mar, como pano de fundo, símbolo crescente do perigo e dos escolhos onde nos podemos ferir. 

É uma leitura fácil? Não! Mas há, apesar de tudo, beleza neste texto, uma beleza estranha e que até agora não consigo definir. Sinto-me culpada quando penso que gostei deste livro, como se este não pudesse ser um livro para se gostar, como se daí viesse uma espécie de culpa. 

Quem se atreve a ler? 

Fico na expectativa de que o leiam e que, depois, venham a correr "falar" comigo.

 

 

12
Mar20

Ensaio sobre a cegueira, José Saramago, um ensaio sobre a humanidade

livrosparaadiarofimdomundo

Wook.pt - Ensaio sobre a Cegueira

Editora: Porto Editora

Páginas: 346

 

Não podia deixar de ser, é tempo do COVID-19, por estes dias declarado pandemia, o que quer dizer que rapidamente pode (está a) infetar milhares de pessoas muito rapidamente. Acontece que, muitas vezes, a arte, os discursos, as pessoas são visionárias. Parece que os Simpsons previram a eleição do Trump e Bill Gates, há pouco mais de cinco anos, terá afirmado numa conferência que tinha deixado de temer o nuclear, parecendo-lhe que o maior perigo poderia vir de microorganismos com capacidade para contagiarem e infetarem as pessoas, guerra para a qual nos devíamos preparar. Não o fizemos, não sabemos ainda como o fazer e, perante tanto exemplo de irresponsabilidade, de falta de civismo, de egoísmo (creio não ser necessário exemplificar) lembrei-me deste livro de Saramago, uma das obras que mais me impressionou na vida.

Li este livro em 1997, muito rapidamente, daquelas leituras que se colam aos dedos e que não queremos largar por nada. Deixo uma nota de humor, encontrava-me de licença de maternidade e quase me aborrecia quando a minha criança reclamava amamentação, porque a leitura era quase uma urgência.

Como devem saber, afinal até há uma adptação ao cinema, protagonizada por Mark Ruffalo e Julianne Moore, o livro parte de uma premissa intrigante: de repente a humanidade é atingida por uma forma de cegueira, contagiosa e que se propaga a um ritmo alucinante obrigando as autoridades a tomarem medidas severas para a sua contenção. Este é o ponto de partida para uma descida vertiginosa à análise dos instintos mais bárbaros que afloram em nós perante situações que escapam ao nosso controlo, que ameaçam o nosso bem-estar, a zona de conforto que nada parecia poder por em causa. Há passagens do livro que permanecem gravadas na minha memória, sobretudo as que estão ligadas à forma como os humanos tendem a definir zonas de supremacia, opressão e violência assim que têm oportunidade. Aliás, o ditado que nos ensina que "em terra de cegos, quem tem olho é rei" é criativamente reformulado, em terra de cegos, um cego "profissional" ambiciona tornar-se rei dos cegos menos experientes e tudo é subjugado a esse oportunismo, desde a higiene à dignidade humana. É atual, não é? O espaço de quarentena onde as personagens são encerradas rapidamente se torna uma zona de guerra, do género dos jogos da fome, é lutar pela sobrevivência a todo o custo e a crueza e realismo dessas descrições nunca mais se apagou da minha memória, em especial um certa memória sensorial que agudizou um sentimento de piedade e repugnância.

Nestes dias, em que assistimos a pessoas irresponsáveis que confundem quarentena e necessidade de isolamento social com umas férias inesperadas para ir à praia, ao shopping, à esplanada, ou que, perante as universidades fechadas, aproveitam para viver a noite despreocupadamente, a leitura deste romance coloca-nos perante cenários apocalípticos que devemos a todo o custo evitar, pecisamente sendo responsáveis, civilizados e sobretudo pensando também que o nosso cuidado é sobretudo cuidado com os outros, em especial os grupos de maior risco. Face à corrida aos supermercados para abastecer a despensa com cem latas de atum (talvez acreditem que as possam atirar aos vírus quando o encontrarem), ou com 20 quilos de arroz, etc, etc, a leitura deste livro devolve-nos uma imagem muito crua do sítio para onde podermos resvalar muito rapidamente.

Estas páginas de Saramago são, compreendo-o agora, quase proféticas e consituem uma ótima lição que nos é prestada daquela forma que só a arte nos pode dar. Recomendo a leitura ou a releitura com essa intencionalidade pedagógica: não queiramos ser os cegos que não querem ver. 

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