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Livros para adiar o fim do mundo

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Livros para adiar o fim do mundo

29
Mai20

#24/2020 - Cossacos, Lev Tolstói - viagem na minha estante

livrosparaadiarofimdomundo

Cossacos

Editora: Relógio D'Água

Páginas: 158

Origem: perdido na estante.

Tolstói é sempre Tolstói.

Cossacos, uma novela do Cáucaso é uma daquelas preciosidade que Tolstói nos deixou e que, por vezes, creio que ficam um pouco ofuscadas pelas suas obras maiores. O autor russo é mais do que Guerra e Paz ou Anna Karénina. Na contracapa da novela, transcreve-se uma apreciação de George Steiner que aproxima Tolstói de Homero sobretudo nestas obras menos complexas. De facto, Cossacos tem uma ação muito simples e que podemos contar numa linha, Olénin, um jovem moscovita, deixa a sua vida de conforto e junta-se ao exército russo em campanha no Cáucaso, apaixona-se por Marianka, mas não fica com ela. Pois, mas é Tolstói, é mais do que isso.

Temos, desde logo, o olhar do narrador que perambula pelas paisagens iemensas e impressionantes dessa zona do globo, dando especial atenção aos montes que dominam a paisagem. Os elementos da natureza estão omnipresentes na narrativa, quase um leitmotiv, a corrente do Térek, as suas águas turvas, a foresta densa onde Olénin caça, os montes de cumes brancos, a vastidão do céu, a doçura do verão, os pomares da povoação cossaca. Como se sabe, o próprio Tolstói fez o mesmo percurso que o seu herói moscovita, também ele se alistou no exército e também ele esteve quatro anos no Cáucaso, o que parece ter influenciado a sua obra e terá ditado algumas das linhas deste livro.

O olhar do narrador confunde-se muitas vezes com o olhar da sua personagem. Olénin contempla apreciativamente os cossacos, as cossacas, a simplicidade das suas vidas, o despojamento dos seus desejos, a beleza asimples e primordial das mulheres, o orgulho nas suas tradições. Moscovo, face à povoação cossaca onde está aboletado, parece a Olénin artificial, cansativa, maçadora, ao passo que o seu quodiano nessa zona remota o faz sentir uma vitalidade que desconhecia, um regresso a um qualquer sítio que lhe parece o mais próximo que pode conceber de felicidade.

Há depois a figura de Mariana, cuja orgulhosa atitude, simplicidade e majestade se vai insinuando no espírito do hóspede que se encontra alojado na isbá dos pais. Num primeiro momento, Olénin não distingue Mariana do meio envolvente, ela parece ser apenas um elemento daquela composição que o enleia. Mas, mais tarde, os seus olhos seguem-na quase obsessivamente e ela torna-se o único interesse de Olénin, caindo numa paixão que o domina. Há neste pequeno interlúdio qualquer coisa da novela de Carlos e Joaninha das Viagens na minha terra, com a diferença que Mariana é uma heróina mais máscula, não sofre do mal du siécle. Ela é forte, trabalhadora, orgulhosa, honrada e não são uns bonitos olhos de um quase príncipe russo que vão abalar a sua fortaleza e por em causa o seu modo de vida. Há também um eco subtil do livrinho Le silence de la mer, de Vercors, relacionado com a forma como Mariana resiste aos olhares, às insinuações de Olénin, ora alimentando-lhe os sentimentos, ora mantendo-se sempre a uma distância que  a faz parecer inacessível.

As reflexões intimistas de Olénin reproduzem muito do pensamento de Tolstói que encontramos em outras das suas obras e que haveriam de desaguar na sua fuga da famílai para abraçar um estilo que vida que sempre almejou, mas que foi impedido de abraçar devido às convenções sociais. Há o elogio da vida simples, há o olhar contempaltivo que compara dosi mundos e duas formas de vida tão distantes entre si, um artificial, convencional, o outro livre, autêntico. enfim esse quase sistema filosófico que é possível completar através das obras de Tolstói.

Fui ali num instante ao Cáucaso, sei o que quer dizer evadir-se no tempo e no espaço, estive fora por umas horas e aptece-me também alistar-me no exército russo e ir pelas estepes ancoradas nos contrafortes de montes inacessíveis conhecer outras formas de vida. Ai ia, ia.

Mais uma resposta à pergunta: Porquê ler o clássicos? Porque está lá tudo.

 

28
Mai20

Post sem livros lá dentro #3

livrosparaadiarofimdomundo

Sei.

Há um outro tempo, outras memórias, que estão em mim, que fazem parte de mim. É preciso ressucitá-las e deixar que permaneçam.

Os olhos fechados com o sol a bater-lhe de fora, deixar o olhar inundado de luz e o calor espalhar-se pelo rosto.

Deambular pela casa vazia, silenciosa e sentir na exatidão de cada objeto que o mundo está concertado.

Ouvir o silêncio.

Ouvir o chilreio doido dos pássaros.

Ver a natureza numa festa de cores, numa explosão de texturas e de cheiros.

Alargar a vista pelo horizonte, amplo e inspirar a distância.

Saber-me segura, saber-me longe, saber-me salva.

Os pequenos prazeres, pequenos, pequenos, colocar a flor na jarra, abrir o livro, sorver o chá, afastar as cortinas, encolher os joelhos, sentar-me e deixar o pensamento fugir.

Distrair-me, perder-me, afastar-me e depois regressar e saber que por um momento não me assiti.

A mão na minha, um toque de pele, o calor de outra presença que me devolve ao sítio onde posso ser.

Esquecer.

Esquecer.

Esquecer.

Chegar a casa.

Regressar, devolver-me, viver no meu tempo, viver na minha existência.

Centrar-me. Tornar-me o centro de mim mesma.

Arranjar-me, curar-me, sarar.

Sei que é possível.

Concentrar-me.

 

25
Mai20

#23/2020 - Crónica de Um Vendedor de Sangue, Yu Hua: a desconcertante ingenuidade no meio da tragédia

livrosparaadiarofimdomundo

Wook.pt - Crónica de um Vendedor de Sangue

Editora: Relógio de Água

Páginas: 240

Da Biblioteca escolar

Durante o ano letivo 2018-2019, a escola onde trabalho foi selecionada no âmbito do Concurso Leituras d'Oriente e d'Ocidente, que visava promover o diálogo entre estes dois universos culturais precisamente através da Literatura. Um dos incentivos do concurso era precisamente a aquisição de obras para a BiBlioteca Escolar. Foi toda uma pesquisa e uma descoberta não só de autores, mas também dessas outras formas de pensar e de entender o mundo com que a arte e a cultura nos permitem contactar, para encetarmos diálogos e das interpelações aprendermos a aceitar o outro, a criarmos com ele empatia. A verdade é que o acervo da biblioteca ficou bem mais rico e, sobretudo, diversificado.

Esta Crónica de Um  Vendedor de Sangue fez parte dessas aquisições. Em tempo de confinamento, requisitei-o e trouxe-o para casa, mas só lhe peguei na última quinta-feira. A contracapa apresenta-o como um dos dez livros mais influentes da última década na China, além de ser da autoria de um dos mais importantes escritores chineses contemporâneos. A sua leitura estabeleceu um diálogo inequívoco com um outro livro, este de Mo Yan, Prémio Nobel, Peito Grande, Ancas Largas, porque ambos traçam um retrato impiedoso, mas cândido, das últimas décadas da história da China, com especial enfoque nos anos do presidente Mao (embora Mo Yan faça uma incursão também muito aprofundada pela ocupação japonesa).

É um romance de família, porque acompanhamos o percurso de Xu Sanguan, casado com Xu Yulan, e dos seus três filhos. Até aqui nada de muito improvável, parece mais uma história, mas não é. Este é um livro original, com um discurso que eu diria desconcertante, porque parodia uma certa ingenuidade na apreensão dos acontecimentos que vão sendo desfiados ao longo do relato. O título remete para uma prática que se afigura comum: as pessoas vendiam o seu sangue aos hospitais, duas tigelas. A venda do sangue obedecia a uma série de práticas e cuidados, para dar mais fluidez ao sangue, bebia-se água até "doer os dentes", depois da venda, comia-se fígado de porco frito e bebia-se aguardente de arroz. Este é um pequeno fio que se entretece no romance.

O livro é enternecedor e comovente na forma como esta família enfrenta e resolve os seus problemas, sejam eles económicos, sociais, de afeto, de relação com a vizinhança e com o passado. No final, o livro é uma belíssima história de amor, de abnegação, de encontros e desencantos, de personagens inesquecíveis, de laços que nada parece quebrar. É ainda o desnudar de uma certa visão da China pelos próprios chineses, de uma pobreza que agudiza o engenho, da dádiva de pequenos gestos que humanizam e resgatam estas personagens de uma indigência a que parecem ser indiferentes.

É uma história que prende, que lemos, pela qual avançamos, comovidos mas perturbados. Destas páginas erguem-se figuras que representam uma trajetória de redenção em meio a enormes adversidades, que cuidam umas das outras, que cedem, que tocam, que amam e que expressam esse amor, por exemplo guardando açucar para as papas em dia de aniversário, ou poupando bagos de arroz da porção diária que hão de ser providenciais em tempos de fome. 

É preciso lermos livros assim, para fazermos um exercício cada vez mais pertinente: calçarmos os sapatos dos outros e percorrermos um pouco os seus caminhos.

19
Mai20

#22/2020 - Tudo é possível, Elizabeth Strout - histórias em caleidoscópio

livrosparaadiarofimdomundo

Wook.pt - Tudo é Possível

Editora Alfaguara

Páginas: 236

Este livro chegou-me como gosto que me cheguem a maior parte dos livros: uma amiga leu, descreveu-o como um livro muito bonito e, como não estamos em tempo de empréstimos, acabei por comprar... como se eu precisasse de pretextos.

É uma leitura daquelas que prende, com uma enorme vantagem, a autora adota, como estratégia narrativa, estruturar este livro como se fosse uma colagem de pequenas histórias, e é-o de facto, mas elas estão todas relacionadas umas com as outras, ou melhor as personagens que as protagonizam estão relacionadas entre si. Dessa forma, o livro lê-se como um romance, mas com o ritmo de um volume de contos. O que, digamos em bom rigor, é bom para "largar o livro" para dormir, por exemplo.

Por acaso, por acaso, achei que a sinopse oferecida na contracapa não corresponde exatamente ao cerne do livro. Muito mais do que o regresso de Lucy Barton, o que a obra nos oferece é um caleidoscópio constituído pelas histórias íntimas de cada uma das personagens que, efetivamente, se relacionam ou relacionaram com Lucy Barton, uma escritora de sucesso que escapou à trituradora de vidas que as pequenas comunidades parecem ser. Mas é mais do que isso, é também aquele lado inconfessável que todos nós guardamos e que, tantas vezes, nos explicam, ou pelos menos levam-nos a compreender muitas das nossas opções. Umas vezes fazem de nós cínicos mortos de medo por aquilo que testemunhamos, outras vezes o sucesso não é suficiente para sanar a pobreza e carência que conhecemos; a violência é muito mais frequente do que sonhamos; a sexualidade reprimida enlouquece-nos pelo medo de não sermos aceites; o amor nem sempre é redentor; os casamentos sobrevivem mais pela cobardia que pela paixão; Deus às vezes faz-se presente e essa fulguração estrutra-nos para todo o sempre;  o sofrimento cunha a desconfiança; a insegurança disfarça-se com animosidade; a redenção vem de onde menos se espera. Estas e outras coisas são a matéria com que se costuram estas histórias.

Confirmo é um livro bonito. Mas atenção não é delidoce, não é Nicholas Sparks. Nada disso, por vezes é mesmo muito cru. Mas fica, fica connosco e é até edificante.

Leiam, porque tudo é possível. 

 

18
Mai20

#21/2020 - Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes, Mathias Énard, é o domínio da linguagem, senhor

livrosparaadiarofimdomundo

Wook.pt - Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes

Editora Dom Quixote

Páginas:159

Género: romance histórico (mas em bom, muito bom)

Comprado, graças a Deus! Senão teria de o comprar depois de o ter lido.

O interesse por este livro veio de uma lista deveras interessante que vi no sítio do Sapo, por ocasião do Dia Mundial do Livro e que era uma espécie de caixa de chocolates: uma lista com dez grandes obras com menos de 200 páginas para ler de um fôlego. Claro que copiei a lista para o meu caderninho com muita aplicação, cheia de vontade de os comprar a todos. Eu me confesso: experimetei colocá-los todos no carrinho da Wook, só para ver quando dava... depois desisti, mas com relutância. Depois fiz outro exercício, fui eliminando aqueles que achei que podiam esperar e sobrou este, em boa hora.

Defina este livro numa só palavra: MARAVILHOSO!

Apresente uma só razão para recomendar este livro a um amigo: o domínio magistral das virtuosidades da linguagem. Li devagar, saboreei deliciada cada frase, quase cada palavra. Decidi não o colocar na estante para o poder ler outra vez

Resuma o livro  com uma metáfora: uma jóia perfeitamente engastada e lapidada.

Defina o livro através de um símbolo: a ponte, as pontes, as projetadas, as que nunca se lançam, as que unem, as que estendidas nunca representam a junção.

Este livrinho ficciona a estadia do grande Miguel Ângelo Buonarrotti na Constantinopla do Grão-Turco, arriscada heresia. O momento em que o escultor desafia o Papa, pondo em risco a sua carreira, dando mais motivos às muitas invejas que se movem contra si, é igualmente o momento em que o Ocidente e o Oriente se defrontam. A visão de Constantinopla, diversa, dispersa, rica, opulenta, culta e heteróclita atinge a visão do homem do Renascimento, preso ainda às grilhetas do cristianismo, ao medo de perder a alma e à doce tentação de se deixar ir.

A obra está continuamente a reenviar-nos para as referências culturais do Renascimento e do próprio ocidente, bem como para esse lugar do mundo que continua a ser a foz onde desaguam dois mundos diamentralmente opostos: o ocidente e o oriente, a Europa e a Ásia, primeiro lugar da globalização. As referências à multiculturalidade da cidade de Constantinopla são recorrentes: gregos, judeus, genoveses, florentinos, latinos, refugiados de Granada, após a tomada do Reino pelos Reis Católicos. A obra resulta como a partícula do Big Bang, pequenina, mas carregada de significado, tal como é frenética e, ao mesmo tempo, marcada por uma certa placidez e vagares ritualizados, a cidade fascinante de Constantinopla. É toda uma Geografia destes tempos de ouro para a cultura, no entanto, mergulhados nas mesmas hesitações, confrontos, dúvidas, fraturas que até hoje não só não cicatrizaram como antes se parecem ter reaberto expondo uma ferida infetada.

Depois, é verdadeiramente, o fascínio da linguagem, servida com a delicadeza de um prato exótico, com uma riqueza sensorial que satura os nossos sentidos. Partindo das listas que Miguel Ângelo anota no seu próprio caderninho, cada palavra tem o aroma das especiarias, a suavidade dos tecidos ricos, a harmonia dos perfumes, o brilho das jóias. Apetece lê-las em voz alta, sentir a espécie de euforia dos sentidos que nos despertam ao mesmo tempo que parecem excertos de versos compostos pelo poeta que é também personagem do livro.

Por fim, o fascínio desta leitura vem de um certo encantamento que resulta de uma hábil, sábia e inteligente fusão de História e Ficção, que assenta também na paródia dos registos histórico, administrativo, poético, biográfico, memorialístico. Todos estes modos de dizer se fundem, se mesclam inebriando mais uma vez a perspicácia do leitor. A nota final, longe de tirar o encanto ao imaginário que se construiu ao longos destas curtas páginas, antes é mais uma nota de surpresa que torna o livro e a sabedoria com que foi escrito ainda mais cativante.

Para quê gastar aqui mais palavras? Se isto não vos convence a correr para o ler, nem sei para que o escrevi.

É - poucas vezes digo isto - a jóia da minha estante. É - ainda digo isto menos vezes, porque há tantos bons livros na vida - um dos livros da minha vida.  

 

13
Mai20

#20/2020 - Essa Gente, Chico Buarque

livrosparaadiarofimdomundo

Wook.pt - Essa Gente

Editora: Companhia das letras

Páginas: 194 páginas

Estou um bocadinho zangada com o Chico Buarque. Não estou muito, porque afinal ele é o Chico Buarque e escreveu Ópera do Malandro; Estorvo, Budapeste e Leite Derramado, além de ter letras para canção que são poesia pura e bela, sublime mesmo. 

Já tinha ficado ligeiramente amuada com O meu irmão Alemão, mas depois fiz as pazes com ele, por causa ds documentos que anexou no final do livro, revestindo aquele relato de uma humanidade que me comoveu.

Este Essa Gente parece o país que talvez o escritor queira retratar, é um romance um pouco à deriva. Não é por ser fragmentário - eu adoro a fragmentação como estratégia narrativa; não é por fazer uma colagem de diversos modos discursivos - eu aprecio imenso essa capacidade num escritor; não é por o seu protagonista ser um anti herói - os anti heróis na sua tragédia, ou comédia, por vezes erguem-se com mais convicção do que os ditos heróis perfeitinhos e arrumadinhos sem uma vacilação, sem uma falha, nem sequer, como costumo brincar, um joanete para introduzir uma nota de imperfeição. Não pode, por isso, ser a isso que se deve este meu estado de "só isto", Chico - posso tratar-te assim, não posso, afinal já passamos tanta hora juntos? Mas é mesmo só isto.

É este o romance do Brasil governado pelo Bolsonaro do vosso e do nosso descontentamento? então vou ali num instante voltar aos teus sambas, às tuas canções comprometidas. Ficas a saber que não és o primeiro que atraiçoa a minha paixão/devoção por um grande nome da literatura. O Vargas Llosa já o tinha feito com as suas Cinco Esquinas. O teu escritor em crise parece demasiado indiferente, demasiado alheado do que o rodeia, fecha as persianas, sim, mas preocupa-se apenas com o próximo engate. Está arruinado e tem um bloqueio criativo... mas não chega.

Eu perdoo-te, porque te amo, muito. Mas é difícil, é muito difícil. Aqueles que colocamos no Olimpo é para lá permanecerem, idolatrados pelo nosso fascínio, não é para virem por aí abaixo com obras assim assim.

Pode ter-se dado o caso de eu não ter percebido nada. Há essa hipótese. Vou agarrar-me a ela.

Até sempre, Chico Buarque.

11
Mai20

Viagens na minha estante #1

livrosparaadiarofimdomundo

A COVIDa obrigou-me a muita coisa - nem todas fáceis - sobretudo no que diz respeito ao meu trabalho (mas não foi disso que eu vim falar aqui), uma delas foi voltar-me para a minha casa, uma espécie de regresso às origens de onde parece que tinha saído há muito tempo. É verdade, descobri que os últimos dez anos pelo menos - não não estou a exagerar - estive como visitant em minha própria casa, vivendo-a e tratando-a como uma espécie de área de serviço, onde vinha ter quando fazia uma pausa na viagem que, juro não saber, não sei onde me anda a levar.

A propósito dessa redescoberta - que passou pela descoberta chocada de que o pó, as teias, o bolor têm tendência a instalar-se - limpei, limpei, tenho limpado. Até que cheguei à estante - uma das - onde guardo os meus livros. E não é que me surpreendi? Ficam a saber que há A rapariga que roubava livros, A mulher que ama livros e a mulher que compra livros - eu! Descobri, quando separei as águas, cerca de sessenta títulos que tenho em casa e que ainda não li. Descobri livros de que gostei tanto, que também separei para reler - ai, ai, as coisas que eu digo, mentindo a mim mesma. Descobri ainda livros que li e que sinto que não li. 

Cheia de boas intenções, separei esses livros, coloquei-os num lugar bem visível que passarei a tratar como uma prateleira de uma livraria, dando início, a esse propósito a uma série de posts  a que darei o título de Viagens na minha estante, prometendo tirar o pó, as teias e o mofo a estes negligenciados da minha leitura. 

Adivinhem o que fiz, depois dessa sessão intensa de limpeza, selecionei 12 títulos para a minha lista de desejos numa livraria virtual. O que é me apetece? Comprar livros! 

Não tenho emenda!

11
Mai20

#19/2020 - Arde o Musgo Cinzento, Thor Vilhjálmsson

livrosparaadiarofimdomundo

Wook.pt - Arde o Musgo Cinzento

Editora: Cavalo de Ferro

Páginas: 243

Através da literatura e da televisão já estive muitas vezes na Islândia e é um retorno que agradeço. Arde o musgo cinzento - que título belíssimo, com a grandeza que o relato nos inspira - foi uma estreia na edição em Língua Portuguesa, proporcionada pela Cavalo de Ferro, corrigindo uma lacuna que impedia o público português de contactar com mais um dos nomes maiores da literatura nórdica. Tal como indiciado pelo título - ao qual me rendi quando o vi exposto na livraria - todo o romance é perpassado por uma espécie de enigma que nos mantém os sentidos aguçados, tal como o musgo que tutela a história, os tons são cinzentos, densos, enredados, intensos.

A ação acompanha a viagem de Ásmundur - que é juiz e poeta - pelas paisagens islandesas até chegar a uma aldeia remota, mais quinta do que aldeia, onde foi cometido um crime que ele deve julgar. Ao longo da sua estadia, o juiz poeta, ou o poeta juiz - é difícil saber qual o papel em que a personagem mais se empenha - tem como interlocutor o pastor da aldeia e o primeiro confronto sucede devido a estas duas persanagens moldadas por circunstâncias tão diferentes. 

A narrativa é pouco linear e funde nas suas páginas as memórias de Ásmundur e dos dois irmãos - atenção à figura feminina - acusados do crime; as cartas do pai de Ásmundur, também magistrado, que o instruem a desempenhar este papel no qual se vem a estrear; dois crimes, dois assassínios motivados pelo amor; a temática do incesto e dos sentimentos que escapam aos sistemas de valores estabelecidos; a maternidade e o abandono; o amor trágico; a tragédia da própria existência humana em meios tão hostis e tão remotos; a grandeza das paisagens islandesas; o gelo, a neve, o sol, o verão e o outono; a impiedade da natureza e dos homens; a poesia e a linguagem despojada, fria e estéril das atas de um julgamento. Tudo isto atravessa estas páginas, mas é-nos dado numa linguagem poética, a roçar o sublime, marcada pelo ritmo da própria poesia, mas também do respirar desse grande mundo gelado e ao mesmo tempo vibrante da Islândia. 

O autor não nos facilita a vida, não nos presenteia com um relato linear, objetivo, simples e, no entanto, também não se pode dizer que o tenha complicado ou enredado, ou emaranhado. O que acontece nestas páginas é semelhante a um momento em que alguém nos coloca a mão no braço e nos pede que escutemos, que aprendamos a perspetivar, que não julguemos apriori, que aceitemos que há cirscuntâncias que, ditando os destinos, podem muito bem escapar à nossa compreensão, devido ao lugar de onde olhamos.

Gostei muito, muito deste livro, é um outro campeonato, definitivamente da primeira divisão. É um teste, um desafio, é literatura no seu melhor - versátil, complexa, interessante, universal e tragicamente humana. Silêncio, que a se vai ler literatura: prosa e poesia.

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