#20/2021 - Gaspar, Belchior e Baltasar, Michel Tournier: voltar ao lugar onde se foi feliz.
D. Quixote
255 páginas
Releitura
Tudo o que está relacionado com este livro me faz feliz. Li-o há muitos anos, ainda estudante em Lisboa, e ele lembra-me esse tempo de deslumbramento em que descobri Michel Tournier, um dos escritores de que li tudo o que está publicado em português. Lembra-me também o Natal, mas um Natal secreto e misterioso, com raízes na história anónima do Rei Taor, que é a mais humana e a mais comovente. Lembra-me ainda a ternura, a surpresa e o fascínio que este livro exerceu em mim quando o li. Lembra-me, por fim, a vida secreta dos livros, porque, sendo um livro de que gosto muito, recomendei-o a toda a gente que conheço e mais além, até que ele se perdeu de mim e, um dia, quando o procurei nas minhas prateleiras, ele não estava. Espero que esteja a fazer alguém feliz. Mas uma amiga muito querida ofereceu-mo no último Natal, ou seja, ofereceu-me o próprio Natal no Natal. E há dias terminei a sua leitura e, ficou decidido, os livros também se fizeram para serem relidos, para serem revisitados e, felizmente, para se tornarem confirmações e, como neste caso, amplificações dessa primeira leitura.
Também conservo na memória que uma das razões pelas quais este livro exerce um enorme fascínio em mim tinha a ver com o seu ponto de partida: sobre os Reis Magos, como os conhecemos, ou os Reis do Oriente, a Bílbia apenas refere cerca de dezasseis versículos, no Evangelho Segundo S. Mateus, nenhum outro evangelista lhes faz referência; o número três infere-se do facto de serem três os presentes oferecidos: ouro, incenso e mirra, tudo o resto são textos apócrifos, lendas e um maravilhoso romance de um autor francês que nos dá uma obra cheia de beleza, mistério, exotismo e humanismo. Michel Tournier inventa uma biografia completa para cada uma das personagens que dão título ao romance, coloca a génese da sua viagem como uma necessidade de encontrar refrigério, respostas, pacificação, cada um dos reis tem uma motivação diferente e todos se cruzam na corte do Rei Herodes, ele mesmo personagem e voz do romance, explicado por si mesmo, explicado também o massacre dos inocentes. A estas figuras que nos são mais familiares se junta Taor, o Rei que vem de mais longe, o mais ingénuo, o mais preso às coisas da terra, mas igualmente o que mais as sublima e o que mais se espiritualiza. E é deveras intrigante, espantosa mesmo a forma como a mestria do romancista costura estas histórias, cerzindo-as com tal meticulosidade que tudo nos parece verosímil e, tal como afirmava Umberto Eco, quase esperamos ver estas referências nos textos sagrados do Novo Testamento.
Mas é de um testamento também que Tournier trata: é o testamento do amor desinteressado, da necessidade da beleza para nos elevarmos da nossa condição de animais, da efemeridade do poder e da glória, da inocência como idade primordial, como uma espécie de grau zero a partir do qual se pode moldar a verdadeira grandeza humana. É também testemunho contra a intolerância, a traição, a vileza e a violência e outra vez a inocência...
É acima de tudo a beleza da linguagem, a perfeição das frases, a delicadez das imagens criadas, o realismo e o maravilhos, céu e terra, fogo e água, sal e açucar, dor e redenção, queda e ascensão, martírio e exaltação. Tudo servido ao leitor com toques de sublime, de génio, de individualidade. É tão bonito, mas tão bonito este livro.