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Livros para adiar o fim do mundo

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Livros para adiar o fim do mundo

26
Mar21

Dia do livro Português

livrosparaadiarofimdomundo

Diz que é dia do livro português. 

Enumeração de livros portugueses que foram tijolos na parede da minha identidade, o meu cânone

Livro de Linhagens do Conde D. Pedro

"Sôbolos rios", "Canção X", "Alma minha gentil", Episódio de Inês de Castro, Luís de Camões

Padre António Vieira

Mensagem, Fernando Pessoa;

Os Maias, Contos ("Civilização", "Frei Genebro", "A Aia", "O Tesouro", "O Suave Milagre"), O Primo Basílio, A cidade e as Serras... enfim, toda a obra de Eça de Queirós e não se fala mais nisso.

Eurico, o presbítero, Alexandre Herculano

Viagens na minha Terra, Frei Luís de Sousa, Folhas Caídas, Almeida Garrett

Contos da montanha, Novos Contos da Montanha, Bichos, A criação do Mundo, Obra poética, Miguel Torga.

Em nome da Terra, Contos ("A galinha";  "A palavra mágica", "Adeus"), Vergílio Ferreira

O romance da raposa, Aquilino Ribeiro

Saga, Contos Exemplares, Obra poética, Sophia de Mello Breyner

O Físico prodigioso, Sinais de Fogo, Antigas e novas Andanças do Demónio, Os Grão-Capitães, Jorge de Sena

Mau tempo no canal, Vitorino Nemésio

Um amor feliz, Contos, Obra Poética, David Mourão-Ferreira

Memorial do Convento, Jangada de Pedra, O ano da morte de Ricardo Reis, História do Cerco de Lisboa, Ensaio Sobre a Cegueira, José Saramago

Para onde vão os guarda-chuvas, A boneca de kokoschka, Jesus Cristo Bebia Cerveja, Afonso Cruz

O homem sem nome, A Voz dos deuses, A hora de Sertório, Uma deusa na bruma, Inês de Portugal, O trono do AltíssimoI, João Aguiar

Os três casamentos de Camilla S, Os linhos da avó, O sétimo véu, A trança de Inês,  Romance de Cordélia, O sétimo véu, O pranto de lúcifer, O prenúncio das águas, Os pássaros de seda, Rosa Lobato Faria

A máquina de fazer Espanhóis, Walter Hugo Mãe

Não se pode morar nos olhos de um gato, Ana Margarida de Carvalho

Rua de Paris em dia de chuva, Isabel Rio Novo

No meu peito não cabem pássaros, Debaixo de algum céu, Se eu fosse chão, Nuno Camarneiro,

Devo ter esquecido imensos autores e imensos livros, mas isto foi uma citação de cor.

Bom dia do livro Português!

 

 

 

 

25
Mar21

Onde estás, poesia?

livrosparaadiarofimdomundo

A horas mortas, penso nas palavras.

Queria escolhê-las como quem escolhe entre a vida e a morte.

Queria encontrá-las como quem encontra o objeto perdido.

Queria sabê-las como quem as sabe.

Queria compô-las como quem cria.

A horas mortas, sonho com as palavras.

E não escolho as sublimes,

E não encontro as veementes,

E não as sei,

E não consigo criar.

A horas mortas, 

naufraga na praia, sedenta à beira do poço,

Fico em silêncio, à espera de uma maré que não sobe.

Eterna baixa-mar da poesia.

 

 

22
Mar21

O insólito acontece

livrosparaadiarofimdomundo

Então, eu li o livro A biblioteca, de Zoran Zivkovic, por causa do clube de leitura que, mais ou menos, dinamizo (mais ou menos, porque não acredito em atos solitários, só fazemos alguma coisa, porque o fazemos com alguém).

Então eu escrevi no blog sobre essa leitura, aqueles textos sobre os livros que resultam da organização de uma sideias a respeito do que li, tudo muito impressivo, tudo pouco académico.

Então, pouco depois de publicado o texto, recebo a notificação de um comentário e eu venho sempre ver, gosto tanto que os textos provoquem interatividade (eu sei que se diz interação, mas eu quero antes este termo). E o comentário era este:

image.png

E então eu respondi como se não tivesse acreditado, certa de que seria uma piada de bom gosto.

E então depois de responder fiquei aflita, porque podia ser verdade - até hoje não sei,

Mas tudo me parece tão insólito como as pequenas histórias que compõem este livro e eu faço como o protagonista de um dos contos, vou aceitar que estas coisas podem acontecer, que o improvável, às vezes, também se manifesta.

21
Mar21

O poema

livrosparaadiarofimdomundo

Procurei o poema,

convoquei as palavras,

invoquei as musas, 

pus a mesa com caneta e papel.

O poema não veio.

O poema não se sentou comigo,

O poema não se deixou convocar

O poema desautorizou as musas.

É caprichoso

É indomável

É esquivo

Diz-se fazer um poema

É preciso labor dor

É preciso rendição

É preciso submissão

É preciso magia

É preciso conjuração mais do que conjugação.

É preciso silêncio

O poema é oráculo

O poema é.

18
Mar21

#10/2021 - A Biblioteca, de Zoran Zivkovic, a escrita como jogo

livrosparaadiarofimdomundo

Wook.pt - A Biblioteca 

Editora Cavalo de Ferro

101 páginas

Da Biblioteca, a propósito do clube de leitura.

Trata-se de um pequeno livro de contos, todos eles intitulados A Biblioteca, seguido de um predicado diferente: virtual, particular, noturna, infernal, minimal, requintada. Além do título partilham um certo cariz fantástico, insólito, inesperado e surpreendente.

A propósito dele, lembrei-me de uma cena do filme Shrek, em que o protagonista tenta explicar ao burro a essência dos ogres, dizendo que os ogres são como as cebolas, têm camadas. O mesmo se passa com este livro, podemos lê-lo em função de diferentes camadas significativas. Pode ler-se como um livro fantástico em que o improvável acontece, pode ler-se como uma obra divertida, pode ler-se como uma série de contos que apontam para as possibilidades da biblioteca. Eu li-o na sua estreita relação com os livros: desde os virtuais - os que não foram ainda escritos - aos feios - como os de bolso que desfeiam as bibliotecas requintadas - ao livro da vida, oas géneros mais indicados aos condenados ao inferno, porque nunca leram um livro; aos que constituem a nossa bilioteca pessoal, aos que são oferecidos ao escritor num momento de bloqueio criativo. Por isso tudo, é um livro que glosa a relação do escritor com a sua obra, com os seus livros, mas também a relação dos leitores com os livros que leem, que formam a sua bilioteca. Mas é ainda um livro que nos alerta para a importância da leitura, cuja extinção parece fazer perigar a própria humanidade, afinal se se lesse mais, haveria menos tempo para praticar crimes. Por último, é efetivamente um livro sobre a biblioteca enquanto espaço de acervo, de acumulação desse objeto mágico que é o livro, aind assim não defendido de se tornar um abjeto a continuarem as previsões da biblioteca infernal. é um livro que nos fala daqueles que amam os livros e esvaziam a sua casa e as suas vidas para aí arrumarem mais um livro da Literatura Universal. É um livro que retrata a forma amorosa como cada um arruma a sua biblioteca. é um livro sobre o sofrimento ligado à arte de escrever. Infelizmente, a edição que li não tem a capa da figura da imagem que aqui coloquei, mas, quando vi esta edição não pude deixar de me maravilhar, pois há realmente algo da obra de Escher neste pequeno livro, esse mesmo desafio à nossa racionalidade.

É um livro que podemos arrumar na prateleira dos pequenos prazeres, que nos deixa de sorriso no rosto, que nos deixa felizes por estarmos um pouquinho mais longe do inferno uma vez que lemos livros, quanto mais melhor. É um livro que motiva para a leitura. é um livro que nos faz reavivar a paixão pela nossa biblioteca particular, como os casados de longa data que redescobrem o fogo da juventude. É um livro que nos desafia a relê-lo, que se presta a isso mesmo, recusando-se a encerrar-se quando o fechamos, porque se estivermos atentos, sabemos que ainda não o esgotámos. Muito bem, Zoran, posso tratá-lo assim?

 

08
Mar21

Pessoas - uma mulher.

livrosparaadiarofimdomundo

Este não é um texto sobre o Dia da Mulher, apesar de ser escrito neste dia e ser, de facto, uma homenagem. Este é um texto sobre esta mulher na sua inteireza.

É a terceira de onze filhos, nasceu com uma deficiência no pé. Desde que a conheço, desde o tempo em que me conheço, usou sempre o mesmo modelo de sapatos adaptado, o modelo mais anacrónico que se possa conceber. Pretos, atados com cordões pretos, rendilhados no peito do pé, rasos, masculinos quase. Já velhos, porque o modelo é exclusivo e, por isso, caro. 

As fotografias antigas mostram-na linda como qualquer estrela de cinema. Foi tão bonita que chega a parecer improvável. Usava um penteado quase curto, bem armado, um porte de senhora. Ao pescoço e nas orelhas, pérolas, ao estilo da Jacqueline. No rosto uma expressão cristalizada, olhar um pouco erguido, o sorriso de sempre na boca.

Casou, jovem - que jovem era - com um cabo-verdiano, embarcadiço, que a levou a viver para o Barreiro, na outra margem. Era raro visitá-la, mas lembro-me de a visitar grávida, talvez do primeiro filho, com uma eterna blusa verde, sobre umas calças pretas. Por causa do pé e da perna nunca, nunca usou saias, nem nos tempos idos da década de quarenta do século passado. Nesse tempo, não trabalhava fora de casa, cuidava dos filhos e esperava que o marido chegasse. 

Quando o marido chegava era uma festa, malas e malas abertas na presença de todos, de onde distribuídos recuerdos  de todas as partes do mundo. Fixei um sombrero mexicano, que perdurou por anos a fio, facas da argentina, artefactos de madeira e pedra certamente africanos. Numa dessas vezes, trouxe para a minha Madrinha - até hoje é a Madrinha - um largo chapéu de renda branco, que lhe acentuou os traços de estrela de cinema.

Mais tarde, muitos anos mais tarde, tomámos conhecimento do acoolismo - antes de ser considerado uma dependência - e das tareias que apanhava. Depois, o marido desapareceu durante anos e ela ficou sozinha com dois filhos, em idade escolar e ela foi mãe sem queixumes, sempre igual a si mesma. Nunca teve outro homem, nunca procurou outra vida. Depois, anos ainda mais tarde, o marido regressou e entrou em casa como se tivesse sido só uma curta ausência, sentou-se à mesa, deitou-se na cama dela. E ela acomodou-se a essas novidades, sem questionar. Os filhos igual. Depois, não muito depois, voltou a violência e a brutalidade. Um dia, entrou em nossa casa, a cara cheia de hematomas, laivos de sangue aqui e ali, os braços amassados. tinha conseguido fugir. Ele tinha andado à procura dela com um fio elétrico nas mãos e uma embalagem de inseticida.

Fez-se entre todos um silêncio. Ele deixou de vir a nossa casa. Só vinha quando a minha mãe estava sozinha e nunca, nunca, falaram daquele assunto. É assim. Todos diziam que ele era muito boa pessoa, era o vinho. É assim que o recordo, como boa pessoa, porque, para todos nós, foi sempre bom, para ela é que não. Depois, um dia voltou a desaparecer. Até hoje. E ela ficou outra vez sozinha e vive como se sempre tivesse sido assim.

Trabalhou durante anos e anos, naquelas profissões que uma mulher pode desempenhar sem qualificações. Comprou um carro, tirou a carta, já bem tarde na vida. Criou os filhos, ajudou-os a constituir família. O mais velho vive em Itália, um ano destes, ele pagou-lhe a viagem para ela o visitar e ela foi, sozinha, sem medo, sem receios, porque nunca os teve. Adoeceu gravemente, uma primeira vez, esteve internada, com enfisema pulmonar. Tem um problema respiratório crónico que a debilitou muito. Recuperou, voltou para casa, continuou a trabalhar. Adoeceu gravemente pela segunda vez, teve cancro em plena pandemia, foi operada, recuperou, pesa 38 quilos. Pesa-se sempre depois de comer, porque é quando pesa mais.

Digo isto tudo, não como quem narra uma história miserabilista, de fazer chorar as pedras da calçada. Não dessa maneira. Digo-o a seco, porque é assim, porque esta mulher fustigada pela vida é a pessoa mais inspiradora que conheço. É a mais divertida. É a mais resiliente. É a mais generosa. É a mais abnegada. É a mais corajosa. Às vezes, penso nela e sorrio, porque pensar nela faz-me bem. Foi a minha segunda mãe. Lembro-me de ficar muitas vezes em casa dela, durante muitos dias, de ela estar a passar a ferro e de me deixar brincar a passar a ferro com a escova do fato e dizer-me que não conseguiria acabar se não fosse com a minha ajuda, e de me sentir importante. Nunca ralhava. Tinha umas chávenas Bordallo Pinheiro, coleção da couve. Era a pessoa mais carinhosa e, ainda assim, não era comum haver abraços e beijinhos, mas o afeto andava por lá, mesmo sem nome. Vive de uma pensão de subsistência, mas não é só disso que vive, sustenta-se também de uma rede familiar que providencia tudo aquilo que a sociedade - essa abstração - não fez, não faz por ela. 

É difícil explicar, é difícil entender. Apesar de estar tanta coisa errada neste percurso, está tudo certo.

 

 

07
Mar21

#9/2021 - A única História, de Julian Barnes: voltar ao lugar onde já fui feliz

livrosparaadiarofimdomundo

Wook.pt - A Única História

Editora: Quetzal

Páginas: 253

Ponto prévio: tenho a dizer que as minhas resoluções para o ano de 2021 - que já paecem ter sido no ano passado - continuam a correr lindamente: ainda só comprei 4 livros este ano! Bem sei que as resoluções diziam que, para aí durante seis meses, eu não compraria livro nenhum, mas aqueles que prometeram perder peso que atirem a primeira pedra (prece-me que também era uma resolução minha). Mas isto é um post sobre livros ou uma sessão de autocrítica? Que mania de desviar conversa!

Pois bem, a propósito do clube de leitura que vai acontecendo, acontece que eu já tinha lido o livro votado, que foi O sentido do fim, de Julian Barnes (também havia outro, A Biblioteca, de Zoran Živković, que requisitei na biblioteca, mas é pequenino...). Como se estava ali a falar de Julian Barnes, achei que o melhor era ler mais livros dele, portanto comprei logo mais dois e depois comprei O sentido do fim no OLX... sou capaz de ser uma pessoa doente.

Ler Julian Barnes é como regressar a um lugar onde já fomos felizes. Nunca desilude. A única história é um livro maravilhoso, cheio de "truques" que fazem dele um acontecimento literário. Está escrito ao estilo de O papagaio de Flaubert, fragmentário, peças de um objeto estilhaçado que o autor vai colando, consciente de que o lugar por onde se voltaram a unir ficará sempre à vista, nunca nos será devolvido na sua integridade. Ora é isso mesmo que o livro demonstra: ao recuperar os acontecimentos do passado através da memória,  a linearidade e a diacronia ficam excluídas, porque a memória é indisciplinada, centrífuga, anda à deriva. Quando lerem, ou se já leram, verificarão que os acontecimentos narrados em cada um dos blocos são contemporâneos, mas são narrados assumindo perspetivas diferentes. Dessa forma, o relato reformula-se, mas também se aprofunda, é uma narrativa autofágica, na medida em que se nutre de si mesma, re-narrando, repetindo, mas em espiral, porque não é um regresso ao ponto de partida, há um desfasamento. Outro "truque" está relacionado com a utilização das pessoas gramaticais, também elas intencionalmente distintas em cada um dos blocos: eu/nós; ela; ele. Há um movimento de desagregação, de distanciamento, que não é só temporal e que estará explicado na última frase do primeiro bloco - vão lá ver se não acreditam em mim.

Há um pormenor maravilhoso, que é o facto de Susan, a protagonista, tratar jocosamente o narrador por Casey Paul: ora Casey, como se explica na própria história, resulta do facto de Susan considerar que as características de Paul fazem dele um caso de estudo. Na verdade,  e na minha perspetiva, a narrativa, tão deliberadamente analítica, tão vincadamente reconstruída, é-nos dada como se se tratasse efetivamente de um estudo de caso: aquele em que se ama mais e, consequentemente, se sofre mais, em que se é mais estragado para a vida, ou se cristaliza a parte da vida que vale a pena preservar. Não  é despiciendo este Casey pelo livro todo.

E no fim de tudo isto, temos a escrita de Barnes, imagética, metafórica, cheia de "níveis" da escrita, o que a torna tão sensorial, tão magnética, tão fluida. Que mestria nesse domínio. Ainda assim, não recuem por causa destes preciosismos quase académicos, A única história é um romance multifacetado, riquíssimo: é uma história de amor - e o amor é a única história - é um romance de formação, é uma análise sociológico sobre o poder que os outros não deviam ter sobre nós, é um romance de queda, são memórias, é um metatexto... é múltiplo, insperado, intenso como a própria vida... e profundamente humano, terno, digno.

Em termos de recomendação, diria qualquer coisa como: larguem tudo o que estão a fazer e vão ler este livro.

Eu devorei-o e ele ficou em mim por vários dias, num estado como ficam as beatas depois de comungarem... é isso comunguei dele.

05
Mar21

A literatura nos tempos de cólera - no que eu me vou meter.

livrosparaadiarofimdomundo

Li ontem, num post da Maria Rosário Pedreira, no seu blog Horas Extraordinárias - en passant, um blog também ele extraordinário - que a tradução da obra da poeta negra que declamou um poema na tomada de posse de Joe Biden - sou péssima para nomes - entregue a uma escritora, vencedora do Man booker prize - sou péssima para nomes - foi contestada e acabou abortada por decisão da escritora por (alerta perplexidade) a dita não ser negra (nem sei se este é o termo politicamente correto agora, mas eu não consigo dizer preto, sinto-me ofensiva), logo não estaria habilitada a compreender a obra que teria de traduzir. Fiquei toda arrepiada e, daí, que os nomes nem tenham grande importância, o destaque vai todo para esta ideia absolutamente trágica: a literatura passou a ter cor! E se a moda pega, não sei onde iremos parar. Começo a estar cansada do radicalmente politcamente correto.

Proponho um exercício. Para mim, a sanha do comunismo contra a religião, o ópio do povo, contra a confissão, a figura de Cristo, e outros adereços, é por demais irónica, quando no lugar de Cristo se pôs o Grande Lider, ou o Querido Líder, no lugar da confissão, se pôs a crítica e a autocrítica, ainda mais penosa, porque havia uma dimensão de humilhação pública, em lugar da missa se puseram as paradas militares, em lugar do evangelho se pôs a doutrina. Enfim, mudaram-se os nomes, mas a lógica era a mesma - disclaimer, gosto de colher das coisas aquilo que elas têm de bom e que pode fazer de mim uma pessoa melhor, e há coisas no comunismo que, nos princípios, me agradam, como a ideia de olharmos uns pelos outros; mas também há coisas no liberalismo de Adam Smith que acho muito acertadas. Voltemos à necessidade de uma obra literária de um autor negro ser traduzida por um negro: se começamos a achar que há coisas de negros e coisas de brancos, não estamos a ser muito originais, já houve quem pensasse assim e até fizesse disso uma forma de organização social, chamava-se apartheid, parece-me que era isso. O que me assusta é uma espécie de auto segregação em nome não sei de quê.

Agora levemos o exercío ao limite: se não sou judia e não estive num campo de concentração, não posso compreender o horror do nazismo e do extermínio concertado. Só os judeus que estiveram em campos de concentração é que podem, já há é poucos, que já passaram alguns anos, mas convém que alguém lá volte. Porquê? Para não nos esquecermos! Não posso ler literatura japonesa, porque não sou japonesa e, de facto, há uma enorme distância cultural que não é sobreponível. Não posso ler literatura africana, em especial a dos países de língua portuguesa, por causa do colonialismo e eu, sendo portuguesa, estou do lado do opressor - mesmo que não fosse nascida, mesmo que queira perceber, mesmo que queira conhecer, mesmo que entenda a literatura como uma forma de me aproximar do outro e de moldar a empatia.

Isto é tudo um disparate enorme, mas um disparate que começa a ser preocupante. Por um lado, andam os cheganos dos nossos dia a clamar a divisão à força da nossa sociedade, estratificando-a - também não é original, em tempos remotos chamou-se feudalismo; por outro, andam as minorias - ou outras coisas, ajudem-me que me faltam as palavras - a defender um orgulhosamente só, que me faz lembrar as feministas mais encarniçadas, que acham que devemos matar o homem, em tempos quisemos matar o pai, uma redoma onde se vão encerrar, não já humilhados e ofendidos, mas orgulhosos e sobranceiros.

Digo eu, humildemente, que a arte não tem cor, nem género, nem cheiro, nem sabor, nem religião. Está, na sua forma mais perfeita, ao serviço do Belo, do Bem, do Ético. Quanto mais mestiça - é de propósito - melhor, quanto mais plural, melhor, quanto mais impura melhor, quanto mais olhares se cruzarem, melhor. Está, parece-me, na hora dos sensatos começarem também a falar, porque, se só os idiotas continuarem a agitar-se na ágora, ainda acham que estão certos. Basta! Pim Pam Pum! Os idiotas são idiotas, abaixo os idiotas!!!

Ou então, leiam os versos de Pessoa: "O poeta é um fingidor/finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente/E os que leem o que escreve/na dor lida sentem bem/não as duas que ele teve/mas só as que eles não têm". Está tudo dito.

04
Mar21

#8/2021 - Lincoln no Bardo, George Saunders: um híbrido literário

livrosparaadiarofimdomundo

Wook.pt - Lincoln no Bardo

Editora. Relógio d'Água

Páginas: 359

Da série livros que tinha em casa, que comecei e não terminei.

Cheguei a este livro através de uma lista com os livros mais importantes da década passada e fiquei muito, muito curiosa. Claro que o comprei na primeira oportunidade, mas não lhe peguei logo, ficou a estagiar. Depois, ainda em 2020, comecei a lê-lo e até tinha avançado bastante. Mas, pelos mistérios da leitura tão inexplicáveis, pu-lo de parte, porque outras leituras se intrometeram pelo meio e deixei-o até a semana passada. Não o deixei de parte por não ter gostado, ou porque a leitura não me agradou, deixei porque é um livro exigente. Tenho consciência que não é um livro que possamos ler cansados, ou para desligar o cérebro. Nada disso. O livro convoca-nos inteiros, exige atenção e dedicação. E, de repente, como à espada do conde D. Henrique em Mensagem,  achei-o em minhas mãos e a leitura fez-se. E que leitura!

Tudo nesto livro é surpreendente, inusitado, original, convincente e, apesar disso tudo, o relato mais humano, mais digno que me lembro de ter lido - até estar a ler um outro livro de Julian Barnes, mas isso fica para amanhã.

Começo pela arquitetura, pela estratégia narrativa e pela linguagem. A hibridez do livro resulta de uma amálgama de géneros: recursos do texto dramático, porque a narrativa é toda colocada no discurso direto das personagens, mas é romance, porque essas personagens, na verdade, levam a cabo uma narrativa que oscila entre a primeira e a terceira pessoas, ora narrando, ora sendo objeto da narrativa. A ação - nem sei se esta é uma categoria que se deque - oscila também entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, os segundos mais complexos que os primeiros, com angústias existenciais a que são dadas mais profundidade. A linguagem assume o pastiche como molde, oscilando entre a notícia jornalística, a carta, as memórias, o diário, o diálogo... e a concertação de tudo isto nunca fica aquém da mestria de quem sabem fazer malabarismos com mutos pins.

Quanto à história, ela resulta também da colagem de muitas histórias, individuais, que explicam a razão de os "enfermos" se recusarem a tomar consciência do seu destino, da lugar onde se encontram, do receio de abandonar este limbo onde podem permanecer e acalentar a esperança vã de um dia poderem regressar ao outro lado, ao lado de lá, para além do gradeamento. O seu tempo, como numa tradição de séculos cujos cânones consolidaram, é  a noite, o tempo do nosso sono, os vivos. Evolam-se das suas formas de enfermo e caminham-deslizam por aqueles lugares de ninguém, uma paródia da aldeia global que, em muitos casos, lhe permite perpetuar o mesmo ostracismo e exclusão, as mesmas hierarquias, os mesmos vícios. Lembrou-me - daí que Gil Vicente seja, de facto, um autor visionário - as personagens dos autos de Gil Vicente, já nas barcas,  já com o destino definido, mas ainda não consumado.

Há, depois, a história do filho do presidente Lincoln, Willie, tragicamente falecido aos 10 anos, o enfermo mais comovente, mas o mais clarividente e o mais corajoso, até no momento de se deixar ir e aceitar a separaçao do seu amado pai. Apesar destes elementos, não receiem esta leitura. É tudo tão elegante, tão fantástico, mas tão sóbrio ao mesmo tempo, tão pungente, tão humano, que a leitura nos aspira para dentro deste livro maravilhoso, devolvendo-nos esperança, fé na humanidade, apego às coisas simples da vida, aqueles prazeres que nos fazem vivos, porque os podemos experimentar. É, mais uma leitura catártica, que nos concilia connosco e com os outros, que nos devolve a nossa justa perspetiva e o nosso justo tamanho, que nos deixa enternecidos, fortalecidos, porque, se o estamos a ler, ainda não estamos na nossa caixa de enfermo, ainda não somos enfermos, ainda podemos e poder é estar vivo.

Leiam, vão ver que não dói mesmo.

 

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