#Às vezes também vejo séries 3 - Stateless, da arbitrariedade
Tem sido assim nestes últimos tempos, muito trabalho e pouco, muito pouco do que me permite sentir que vivo. A leitura tem estado em banho maria. Entretanto, consegui ver séries na modalidade de que mais gosto: minisséries.
Assim, cheguei a Stateless, cujo título significa de "sem estado", estado político, tutela. Vi na Netflix, tudo de rajada que foi para isso que se fizeram os domingos e para que as segundas-feiras custem um bocadinho mais, já que me deitei a horas inconfessáveis, mas vi, tive de ver até ao fim, a suster a respiração e a falar um bocadinho sozinha.
Os aspetos técnicos da série são muito bons, em especial a linha narrativa que faz confluir as histórias dispersas que se vêm a cruzar no lugar onde não se tem estado, um campo para refugiados na Austrália. Entre esses, por engano, encontra-se uma australiana que foge de si mesma e que aí permanece (esta parte é baseada em factos verídicos).
Há três eixos narrativos que sustentam a ação e que representam outras tantas perspetivas sobre o que ali se passa: os refugiados - sublinho a forma como as palavras, a designação escolhida destitui aquelas pessoas, que são os não-cidadãos ilegais -; os guardas do campo, as instituições que gerem o campo. Todos são objeto de forças que os esmagam, todos se digladiam perante a humanidade/desumanidade com que têm de lidar. O diretor do campo e a agente do governo, cuja maior preocupação é não ser notícia dos jornais, sobretudo se essas disserem respeito às condições em que se encontram os "habitantes do campo". Os guardas do campo, uns aproveitando o poder que têm sobre aquelas pessoas "sem estado" para darem largas a um certo impulso para a violência que sempre parece surgir perante aqueles que estão verdadeiramente indefesos; outros vivendo em conflito com a sua consciência perante a crueza do que observam e que os vai transformando. Os refugiados, histórias repetidas de violência, de perda, de pobreza, de oportunismo, de esperança, de humilhação, de rostos maltratados de quem a tudo se submete para obter um visto e não ser obrigado a voltar.
Tudo na série concorre para esse ambiente opressivo que esmaga o espetador, que nos envergonha, que nos obriga a tomar consciência da nossa impotência. A localização do campo, no meio do deserto australiano, a cor vermelha da terra, o calor opressivo, a sujidade, o pó. As roupas transpiradas dos guardas, a sua falta de preparação para o serviço que prestam, a sua brutalidade, as armas, a troça e o riso, a incompreensão. Mas, em especial, os refugiados, cuja única opção é esperar: esperar pelo agente da imigração, esperar pela entrevista, esperar não errar com as palavras, esperar não cometer nenhum erro que impeça a atribuição do visto, esperar pelo visto, esperar em vão durante anos, esperar não ser repatriado, esperar para se reunirem à família, esperar apenas. A agente do governo assoberbada, os processos que se acumulam, a impotência, a gestão da pressão, a gestão de um campo que sintomaticamente é comparado a uma panela de pressão prestes a rebentar.
Não me posso alongar. É, apesar de tudo isto, uma série muito bonita, que vale muito a pena ver. Consegue evitar o facilitismo da narrativa. É dramática com autenticidade. É crua sem condescendência. É didática. É reveladora da enorme confusão que é para o mundo esta questão das pessoas deslocadas, estes não cidadãos, como a jovem curda que não se atemoriza com as condições do campo, porque tinha passado por atrocidades bem maiores. Gostei muito, mesmo muito.