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Livros para adiar o fim do mundo

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

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Livros para adiar o fim do mundo

14
Nov23

Despedidas: Ulisses e Penélope

livrosparaadiarofimdomundo

Em 2023, tive de me despedir de dois dos meus cães, o Ulisses e a Penélope.

Eram da mesma ninhada, rafeiros alentejanos, dos cães mais meigos que eu conheci.

A Penélope foi a primeira a vir. Era uma cachorrinha super esperta, com um olhar cheio de vida. Morava cá a Guta, que espantada com a novidade, a fazia rebolar pelo pátio, sem a magoar, mas também não eram carinhos o que lhe dava. A Penélope rilhava-lhe os dentes, escondia-se debaixo de tudo o que protegesse e não dava parte de fraca. Entretanto, pouco depois da chegada da Penélope, a Guta morreu inesperadamente, vítima de parvovirose. Foi um choro cá em casa. Lembro-me de uma viagem a Lisboa, em que quase não vi a estrada, porque a fiz a chorar ininterruptamente. Quando demos com a Guta morta, a Penélope estava sentada ao lado dela, como quem a vela.

Para superar o desgosto da morte da Guta, o meu pai ofereceu ao meu filho aquele que viria a ser o Ulisses. A ninhada de onde nasceram tinha sido afetado por uma doença de difícil diganóstico e mais difícil tratamento. Ulisses tinha sobrevivido, mas, quando cá chegou, era um cão ainda muito doente. Quando cresceu, as sequelas dessa doença fizeram-se sempre notar, em especial nas patas traseiras.

Tanto o Ulisses como a Penélope nos trouxeram as maiores alegrias que os cães nos podem trazer. Eram ambos muito inteligentes, muito meigos e, com eles, aprendi que os cães têm personalidades muito distintas, tal como nós. A Penélope era como uma rainha, generosa no seu carinho, mas mantendo-nos à distância. Não era uma cadela fácil, não tinha a sua deferência qem queria, mas quem ela achava que merecia. Era capaz de uma indiferença por todos nós, que nos divertia imenso. Era ela que mandava no Ulisses e, sempre que ele fazia qualquer coisa que lhe desagradava, ela rosnava-lhe muito a sério e ele, com um jeito que não esqueço, baixava a sua cabeça enorme e afastava-se cabisbaixo. O Ulisses teve espírito de cachorro até ao fim, assim que nos aproximávamos dele, ele deitava-se de barriga para baixo para receber as nossas festas, era doido por comida, era doido por todos nós, quando não podia estar connosco, gania baixinho, chorava para nos comover. De manhã, sabia sempre quando nos levantávamos e ficava hirto à porta, curvando a cabeça à medida que acompanhava os nossos passos antes de abrirmos as portas. Podia andar a quilómetros de casa, mas sabia sempre quando é que a porta tinha ficado encostada. Então, com a pata abria-a, entrava em casa e ia até à cozinha à procura de um petisco que pudesse surripar. Lembro-me de um dia ter sido um prato enorme de batatas doces assadas, que ele comeu sem partir o prato.

Em 2023, o Ulisses e a Penélope fizeram 13 anos, sendo de uma raça de grande porte, isso notou-se muito. O Ulisses perdeu a mobilidade e começou a cair e só se podia levantar com a a nossa ajuda. Ainda o medicámos, mas foi ficando cada vez mais apático, as suas patas traseiras trairam-no e, quando deixou de comer, foi preciso tomar a decisão de sermos generosos com ele. Em fevereiro perdemos o Ulisses. Em novembro, a Penélope, que tinha mesmo um ar de velhota, que passava muito tempo a dormir, que nem sempre se levantava para nos cumprimentar, deixou repentinamente de comer, entretanto, perdeu também a mobilidade, deixou de beber e limitava-se a fitar-nos com um olhar inquiridor, mas ainda reativa às nossas festas. Foi, mais uma vez, preciso tomar uma decisão. É muito difícil.

O sofrimento - porque houve sofrimento - nos animais deixa-me muito impressionada, é absolutamente silencioso, resignado, paciente. O nosso amor é importante para eles. A decisão de lhes encurtar a vida para que sofram menos é generosa (sei que prolongar a vida da Penélope era mais crueldade que amor), mas é mesmo muito difícil, porque é desistir da nossa esperança. Hoje, para mim, foi como o fim de uma era e, como disse a minha filha, foi também a perda de uma parte significativa da infância dos meus filhos que cresceram com estes dois cães.

Um verão em que saímos de férias, O Ulisses e a Penélope divertiram-se bastante. Em outubro, nasceram seis cachorros, quatro deles morreram poucas horas depois, ficaram dois. Sempre que chegávamos a casa, eu e a minha filha corríamos a ver se eles ainda ali estavam. Foi impossível dá-los, ficámos com eles. São o Hércules e a Meg. São o legado da Penélope e do Ulisses, reconforta, mas não substitui. De repente, o pátio parece muito vazio e, quando olho pela janela, vejo o Ulisses e a Penélope a velarem por nós.

05
Nov23

#29/2023 - O coração é um caçador solitário, Carson McCullers: um livro onde morrem todos os sonhos.

livrosparaadiarofimdomundo

O Coração é um Caçador Solitário

355 páginas

Editorial Presença

 

Andava há muitotempo para ler este livro, undicado como um dos 100 melhores livros do século XX, segundo a Time Magazine. Foi a minha leitura nas duas últimas semanas, emprestado por uma amiga, com quem partilho o gosto pela leitura.

O livro narra-nos as histórias de cinco personagens, na Geórgia da década de 20. As personagens são um surdo-mudo, uma jovem adolescente, um médico negro, o dono de um café e um socialista. Habitantes de uma pequena cidade do sul da América, partilham as mesmas circunstâncias de pobreza, marginalização, violência e desesperança. O surdo-mudo, senhor Singer, é como um centro em torno do qual gravitam as restantes personagens, que fazem dele confidente, dando-lhe a conhecer os seus sonhos, angústias e anseios, num tempo que parece fermentar de expectativas que nunca chegam a concretizar-se.

É uma narrativa serena, muito melancólica. Nada parece suceder e parece que tudo é possível. A história vai crescendo em tensão, prendendo o leitor que percorre as páginas também à espera de saber o que virá a contecer no futuro destas personagens tão complexas. Será que Mick virá a tornar-se numa grande compositora? Será que o dr. Copeland conseguirá que os direitos dos negros venham a ser respeitados? Será que Bill Brannon encontrará o amor, esclarecendo a ambivalência dos sentimentos que manifesta? Será que os homens conseguirão entender a verdade que Jake Blount quer que todos conheçam?

A chave do livro, em minha opinião, está na incomunicabilidade que se estabelece entre estas personagens. Quando acontece encontrarem-se todos no mesmo espaço - o quarto do senhor Singer para o qual convergiam todos os dias - nenhum deles consegue falar com os outros, a tensão é tão palpável que entre eles nutrem uma verdadeira aversão e acabam por dispersar porque, na verdade não se toleram. Embora todos queiram o mesmo, a realização dos sonhos numa terra estéril que, por si só, parece secar e fazer mirrar o sonho mais consistente, não conseguem comunicar uns com os outros e essa incapacidade parece ditar o fim dos sonhos, tragados pelas circunstâncias adversas que nenhum deles consegue vencer. Quanto a mim, o paradigma dessa incomunicabilidade está simbolicamente representado no facto de todos partirem do pressuposto de que o senhor singer os compreendia e que prestava atenção aos seus desabafos, quando este convivia com eles, fechado no seu mutumismo e surdez congénitos, com verdadeira indiferença, consumido pelas suas próprias preocupações.

É um livro sobre desencontros inexoráveis, que sintetizam os desencontros de uma sociedade fraturada, racista, violenta, cujas tensões a pressionam até explodirem em confrontos, em intolerância, em violência quase generalizada. É um livro atual, que nos alerta para o perigo de não nos abrirmos ao outro e de não conseguirmos estabelecer pontes. Gostei muito e gostei que o livro me prendesse à leitura com a firmeza e a consitência com que está escrito, já que, a título curiosidade, foi o primeiro livro da autora a ser publicado, com a idade de 23 anos. Sinto inveja... 

 

01
Nov23

Às vezes também vou ao cinema: Assassinos da Lua das Flores

livrosparaadiarofimdomundo

 

Assassinos da Lua das Flores,

 

Não há nada como ir ao cinema, abstrairmo-nos de tudo e ficar no escuro da sala, apenas focados no filme.

Pois se forem ver este Assassinos da Lua das Flores, mesmo que não queiram, a intensidade do filme vai manter-vos quase sem respirar desde o primerio instante até ao último segundo desta longa metragem de 206 minutos.

Em poucas palavras, o filme é inspirado no livro homónimo do jornalista David Grann (não conheço o livro) e debruça-se sobre a tragédia que se abateu sobre a nação dos Osages, quando se descobriu petróleo nas suas terras, no Oklahoma. É fácil, a partir desta sinopse, perceber sobre o que é o filme: atrocidades cometidas em nome do dinheiro por homens pertencentes à maioria branca que não consegue ver os outros a deterem poder nem dinheiro. 

Começo por aquilo que primeiro me chamou a atenção: a banda sonora. Marcando o ritmo narrativo do filme, é muito boa, em alguns momentos, principalmente logo no início, condiciona a nossa respiração, enquanto os sentimentos de revolta e repugnância começam a crecer dentro de nós.

Segue-se a fotografia, dando conta da beleza natural e um sítio "abençoado" por Deus, já que ai se descobriu petróleo. Da transição da paisagem selvagem, de vastos horizontes, para campos extensos de torres de petróleo, feridos pela ganância dos homens, pouco há a dizer, os valores mais altos são sempre os mesmos.

Os crimes cometidos contra os índios Osages com o fito de tomar posse do petróleo e do dinheiro são o tópico transversal do filme. Entre doenças misteriosas, mortes violentas que ninguém investiga,  assassinatos pela calada na noite, assaltos aos índios, até depois de mortos, casamentos por interesse com as mulheres Osage, depois assassinadas para se herdarem os seus direitos, assassínio de crianças com o mesmo objetivo, tudo serve para que os brancos tomem posse daquilo que é dos Osages. Um outro aspeto que causa verdadeiro choque é percebermos que os índios para movimentarem o seu dinheiro precisavam de tutores brancos que autorizavam esses movimentos, sendo ainda necessário justificar a despesa.

O desempenho dos atores é brilhante, em especial de Robert de Niro, cuja perfídia da personagem a que dá corpo e alma, quase se cheira na sala de cinema, tão insinuante se torna. Verdadeiramente odioso. Leonard Di Caprio, igual a si mesmo, ator camaleónico, capaz de qualquer papel, sempre convincente, sempre autêntico, neste caso um perfeito patife ali a roçar o idiota, mas fruto do tempo e dos modos. Lily Gladstone, verdadeira heroína clássica, sábia, inteligente, serena e de uma grandeza que constrasta em absoluto com as personagens de Di Caprio de De Niro. Extraordinária.

Martin Scorsese a evidenciar que a experiência é um trunfo que só de omina com o tempo. O filme é maravilhoso, até pelo toque moderno e irónico de algumas cenas. Continua a abordar temas que lhe são caros, nomeadamente a violência, sempre relacionada com o dinheiro. A ganância que não se detém perante qualquer obstáculo.

Pelos tempos que vivemos, o filme é também muito atual, opressão, violência, tentativa de levar a cabo um genocídio, o facto de a justiça não ser um direito inalienável para todos. Isto resumido numa das frases que, em minha opinião, sintetiza bem o filme, proferida por De Niro, qualquer coisa como: perante o conhecimento do mal, durante algum tempo, as pessoas manifestam-se, protestam, mas, com o tempo, vão à sua vida e acabam por se esquecer. Vivemos muito essa forma de estar, a guerra da Ucrânia normalizou-se, Gaza também se virá a normalizar...

Ver este filme é quase um exercício de cidadania.

 

 

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