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Livros para adiar o fim do mundo

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Livros para adiar o fim do mundo

25
Fev24

Às vezes também vou ao cinema: A Zona de Interesse

livrosparaadiarofimdomundo

 

Em minha opinião, estamos a ter uma excelente época de cinema. Efetivamente, tenho visto filmes de excelência, nomeadamente o extraordinário Os Excluídos, mas não é sobre esse que venho escrever hoje.

Um dos filmes pelos quais tinha mais curiosidade era precisamente A Zona de Interesse, adaptação do romance homónimo de Martin Amis, e essa atração vinha precisamente da fotografia, a partir dos curtos trailers que iam surgindo nas redes sociais. Assim, pus-me a caminho e lá fui ver o filme e em boa hora o fiz, já que, para mim, foi uma experiência marcante, muito marcante.

O filme acompanha a vida familiar de Rudolph Hoss e da sua esposa Hedwig, assim como dos filhos, cinco, entre rapazes e raparigas, numa casa onde impera a ordem, a harmonia, a arrumação e um bem-estar por demais óbvio. A residência da família está circundada por um jardim muito bem cuidado, com imensa variedade de flores, recantos idílicos, de um bom gosto extremo, equilibrado, com piscina, relva de um verde luxuriante. A vida familiar decorre numa tranquilidade que deve ser o sonho de qualquer um: marido e esposa respeitam-se, não há discussões, as crianças são obedientes, frequentam a escola, as serviçais da casa mantêm tudo em ordem. Em tudo aquela família e aquele espaço são perfeitos.

Acontece que Rudolph Hoss é o comandante que gere o campo de extermínio de Auschwitz, acontece que a casa de família vive paredes meias com os muros do campo, aliás, o dedicado comandante sai todos os dias de manhã para o seu emprego, bastando-lhe atravessar uma pequena cancela antes de penetrar no campo. Acontece que os muros que circundam o jardim são os muros do campo, ainda não totalmente cobertos pelas plantas e arbustos cultivados por Hedwig, a fim de ocultar a falta de beleza dos mesmos. Acontece ainda que o quotidiano da família é pontuado pelos ruídos que chegam do campo, tiros, vozes, ordens gritadas, comboios que chegam e que partem.

O filme é avassalador, é esmagador. Não há uma única imagem sobre as atrocidades e o horror de Auschwitz, mas esse horror é omnipresente, ainda que conscientemente ignorado por todos os elementos da família. Mas o horror maior é mesmo a banalidade do mal, tal como definido por Hanna Arendt, a indiferença total, o cinismo das palavras, o oportunismo com que os nazis (con)viveram com o sofrimento de milhares de pessoas, focados nos seus interesses. Hoss não é mais do que um funcionário que se preocupa com as suas metas e objetivos, em progredir na carreira, naquela carreira, preocupado em resolver os desafios que novas "encomendas" lhe trazem, como outro qualquer diretor de empresa. Hoss é muito competente no que faz, é uma referência, e o filme revela-nos o quanto, já no seu final, sempre dessa forma, quase como o teatro de Brecht, apenas nos mostra, o resto é connosco. Aqui e ali, se estivermos muito atentos, vamos percebendo, vamos lendo os sinais da distopia, mas são subtilezas apenas.

Em termos cinematográficos, do pouco que entendo, a fotografia, a banda sonora, os planos de filmagem, o desempenho dos atores, conjugam-se no mesmo objetivo, é como se o realizador mostrasse pelas suas personagens a mesma indiferença que perpassa por todas as cenas, com pouquíssimos, grandes planos, que, às tantas, quase nos fazem falta, queremos disitnguir os rostos, queremos contemplá-los para, nessa proximidade, os podermos odiar, mas tal não é possível. Tudo isso contribui para a forte impressão que o filme causa, em especial, como se mantivesse o espectador também à distância. 

É um filme para se ver no grande ecrã, na sala escura, a sós com as cenas. É, dentre os muitos bons filmes que vi este ano, o melhor de todos eles. Para mim, leiga nestas coisas, uma verdadeira obra-prima e tão forte, que me custou a levantar da cadeira quando terminou. Ficou-me esta reflexão, nestes tempos pouco encorajadores, a arte vai-se revelando uma forma de intervenção, de despertar para a proximidade do mal, para a emergência da empatia, e isso é uma coisa boa.

Vale a pena ver.

Fica a vontade de ler também o livro.

13
Fev24

#13/2024 - pequenas coisas como estas, Claire Keegan: manifesto contra a indiferença

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Pequenas Coisas como Estas

Relógio d'Água

81 páginas

Apetece-me só deixar a imagem da capa, a indicação das páginas, que não desencorajam ninguém, e dizer para se aventurarem na leitura deste pequeno/enorme livro, para se verem surpreendidos como eu.

Mas a verdade é que não consigo ficar calada, tenho sempre que dizer alguma coisa: por exemplo, leiam este livro, mesmo que seja o único que vão ler na vida. Vale cada palavra, cada linha, cada pequeno capítulo.

A história apresenta-nos (como ponta do iceberg) o dia a dia de Bill Furlong, comerciante de carvão, assoberbado com trabalho nos dias que antecedem o Natal, agudizados pelo clima frio da Irlanda. Bill é pai de família, tem cinco filhas e vive para as educar e para lhes garantir um futuro mais ou menos tranquilo numa Irlanda sempre marcada pelo estigma da pobreza. Nesses dias, Bill dá por si a questionar a sua vida, a ansiar por qualquer coisa imprecisa, a recordar a sua infância, a forma como a mãe teve a sorte de se ver protegida pela patroa, quando se soube grávida em solteira. A Bill nada faltou, apenas um puzzle que ele tinha desejado num dos Natais da infância. Como muitas outras crianças nessa época, fruto de circunstâncias idênticas, Bill nunca conheceu o pai. Este dado da biografia de Bill é fundamental para perceber a mensagem da história.

Sobranceiro à vila, situa-se o convento, paredes meias com o colégio onde estudam as filhas de Bill, igualmente administrado pelas freiras. Bill é o fornecedor de carvão do convento.

Mais não digo, porque não posso, nem quero, estragar-vos o prazer da leitura e de estabelecerem os nexos da história. O que é verdadeiramente impressionante neste livro é a forma como a autora sem falar da atrocidade de que se propõe tratar, consegue, com breves pinceladas, dar-nos conta da desumanidade, da hipocrisia, da crueldade, da indiferença que entornam o assunto que está ali a ser tratado. O que é aqui equacionado é como é possível, paredes meias com o horror, permanecer indiferente, fazer-se de conta que não se sabe, ceder à imposição do silêncio, enquanto seguimos a nossa vida tranquilamente, sem levantarmos ondas. Não há nesta observação o mínimo juízo de valor. É mais uma interrogação, é mais o desejo de não nos vermos assim testados e interpelados. É esse o motivo do livro.

Por outro lado, cada página traz-nos a imagem da irlanda, dos seus hábitos e tradições. É como se fôssemos transportados até lá, sorvessemos o mesmo chá a propósito de tudo e de nada, entre outros apontamentos. É, por fim, a clareza da linguagem, sem equívocos, sem hermetismos, na sua desconcertante simplicidade, de quem se limita a mostar, a apontar, deixando-nos a responsabilidade de trilharmos o caminho.

Deixo como última recomendação, a mais importante de todas, a leitura da nota final e garantir-vos que não há arrependimento possível por virmos a este livro, mais um que me inspirou a vontade de ser melhor do que aquilo que sou, que me desafiou a superar-me, a centrar-me na bondade, na coragem, na indignação.

Leiam, vão ver que vale a pena.

 

05
Fev24

#8/2024 - Certas Raízes, Hélia Correia: contos intrigantes.

livrosparaadiarofimdomundo

Certas Raízes

Relógio D'Água

97 páginas

Este volume de Hélia Correia reúne 7 contos, narrativas breves carregadas de sentido, profundas, complexas e motivadoras de perpelxidade, quando não perturbação.

A autora escreve muito bem, revela um exímio domínio da palavra e da narrativa, doseando inteligentemente a informação que revela, deixando vastos espaços para a intepretação do leitor. É, por isso, uma leitura que nos deixa quase inquietos, mas também muito rendidas à sua forma de contar. Efetivamente, há aqui uma maturidade que a longa experiência de Hélia, em especial, nos contos, justifica e explica.

Destaco o último conto do volume, precisamente o que comunga do mesmo título do livro e qur remete para a persisitência de certas raízes na naturez humana, que nos mantêm próximos da ferocidade animal, em especial quando nos agregamos em bandos (alcateias), quando protegidos pelo grupo a que pertencemos somos capazes de atrocidades, talvez porque destituídos de individualidade, talvez, porque não é concreto o nosso papel, talvez porque nso limitemos a participar e a nossa presença legitime o crime comum. 

Outros contos remtem ainda para a procura da beleza eterna, para a construção de um copro perfeito, que se vai/nos vai fragilizando, que se torna obsessão e nos afasta da realidade. Denuncia-se através dessa perseguição certas pulsões que nso acometem no presente, que nos esvaziam pouco a pouco da nossa humanidade, já que, compulsivamente cedemos à artificialização do que somos, da idade, do rosto, do corpo, da alma, por fim.

Se fosse possível encontrar um ponto comum entre todos os contos, diria que a desumanização seria uma dessas ideias que são transversais ao livro, o que lhe confere o seu pendor satírico. É uma denúnica, é uma escrita reveladora dos nossos equívocos.

Por fim, destaco a perfeição da escrita de Hélia Correia, sóbria, inteligente, erudita, fluida e inquietante.

Recomendo, pois.

01
Fev24

Um toque no coração

livrosparaadiarofimdomundo

No sábado, assistiu a uma palestra, onde fui moderadora de uma conversa à volta de um livro, mas não é disso que me traz aqui.

À saída da palestra, entre cumprimentos, aproximou-se de mim e perguntou-me se eu era quem eu sou. Respondi-lhe que sim, atenciosamente. 

Respeitosamente, pediu se podia marcar uma reunião comigo, durante a semana, porque queria muito fazer uma proposta à pessoa que eu sou no cargo que desempenho. Voltei a dizer-lhe que sim. Pedi-lhe que telefonasse, na segunda-feira para verificar a agenda. 

Telefonou. Sempre no mesmo registo respeitoso, atencioso, cavalheiresco quase. É um senhor de idade, tímido, inseguro, humilde, revelando uma alma que me comoveu profundamente.

Hoje reunimos então na escola. Assegurou-me que não me tomaria muito tempo, mas que tinha uma ideia para me apresentar. Pu-lo à vontade e preparei-me para o escutar. Disse-me que gostava muito de história, que valorizava muito a preservação dos monumentos e outras marcas da nossa história comum. Que tinha visto dois programas da rubrica "Visita Guiada", que lhe tinham parecido especialmente interessantes: um dizia respeito a Sintra e outro à Citânia de Briteiros, em Guimarães. Trazia consigo um quadrado de papel, menos que A6, onde tinha registado o nome dos sítios de interesse histórico, a cidade onde se situava cada um deles e um contacto telefónico. A sua proposta era que a escola levasse lá os alunos em visita de estudo, porque achou que seria importante para eles conhecerem aquele património. Pediu licença ainda para me apresentar outra proposta. Que é membro de uma associação e que o preocupa o facto de as crianças passarem tanto tempo ao telefone, por isso sugeria também que as crianças pudessem frequentar a sua associação, que participassem numa ssembleia para perceberem como funciona. Dei-lhe autorização para entrar em contacto com a professora da escoal amis perto e de propor essa articulação.

Hoje, no final de um dia muito intenso, chegada a casa, foi esta reunião que me veio insistentemente à lembrança, daí ter de escrever sobre ela. Primeiro, porque me dói de tanto me comover, que generosidade, que proatividade, que bondade neste gesto, que forma exemplar de valorizar a escola e, ao memso tempo, a nossa identidade, que forma de cidadania ativa e participativa. Que coragem também... Que gentileza. Ficou em mim o insólito deste encontro, que me deixou perplexamente feliz, mas, sobretudo tão, mas tão sensibilizada. Se fosse possível, voltaria à sala onde reunimos e abraçaria o senhor, na sua fragilidade, timidez e imensa delicadeza e bondade.

Sinto-me tão grata por este toque no coração, que me dói, sem que eu saiba muito bem porquê. 

 

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