Às vezes também vou ao cinema: A Zona de Interesse
Em minha opinião, estamos a ter uma excelente época de cinema. Efetivamente, tenho visto filmes de excelência, nomeadamente o extraordinário Os Excluídos, mas não é sobre esse que venho escrever hoje.
Um dos filmes pelos quais tinha mais curiosidade era precisamente A Zona de Interesse, adaptação do romance homónimo de Martin Amis, e essa atração vinha precisamente da fotografia, a partir dos curtos trailers que iam surgindo nas redes sociais. Assim, pus-me a caminho e lá fui ver o filme e em boa hora o fiz, já que, para mim, foi uma experiência marcante, muito marcante.
O filme acompanha a vida familiar de Rudolph Hoss e da sua esposa Hedwig, assim como dos filhos, cinco, entre rapazes e raparigas, numa casa onde impera a ordem, a harmonia, a arrumação e um bem-estar por demais óbvio. A residência da família está circundada por um jardim muito bem cuidado, com imensa variedade de flores, recantos idílicos, de um bom gosto extremo, equilibrado, com piscina, relva de um verde luxuriante. A vida familiar decorre numa tranquilidade que deve ser o sonho de qualquer um: marido e esposa respeitam-se, não há discussões, as crianças são obedientes, frequentam a escola, as serviçais da casa mantêm tudo em ordem. Em tudo aquela família e aquele espaço são perfeitos.
Acontece que Rudolph Hoss é o comandante que gere o campo de extermínio de Auschwitz, acontece que a casa de família vive paredes meias com os muros do campo, aliás, o dedicado comandante sai todos os dias de manhã para o seu emprego, bastando-lhe atravessar uma pequena cancela antes de penetrar no campo. Acontece que os muros que circundam o jardim são os muros do campo, ainda não totalmente cobertos pelas plantas e arbustos cultivados por Hedwig, a fim de ocultar a falta de beleza dos mesmos. Acontece ainda que o quotidiano da família é pontuado pelos ruídos que chegam do campo, tiros, vozes, ordens gritadas, comboios que chegam e que partem.
O filme é avassalador, é esmagador. Não há uma única imagem sobre as atrocidades e o horror de Auschwitz, mas esse horror é omnipresente, ainda que conscientemente ignorado por todos os elementos da família. Mas o horror maior é mesmo a banalidade do mal, tal como definido por Hanna Arendt, a indiferença total, o cinismo das palavras, o oportunismo com que os nazis (con)viveram com o sofrimento de milhares de pessoas, focados nos seus interesses. Hoss não é mais do que um funcionário que se preocupa com as suas metas e objetivos, em progredir na carreira, naquela carreira, preocupado em resolver os desafios que novas "encomendas" lhe trazem, como outro qualquer diretor de empresa. Hoss é muito competente no que faz, é uma referência, e o filme revela-nos o quanto, já no seu final, sempre dessa forma, quase como o teatro de Brecht, apenas nos mostra, o resto é connosco. Aqui e ali, se estivermos muito atentos, vamos percebendo, vamos lendo os sinais da distopia, mas são subtilezas apenas.
Em termos cinematográficos, do pouco que entendo, a fotografia, a banda sonora, os planos de filmagem, o desempenho dos atores, conjugam-se no mesmo objetivo, é como se o realizador mostrasse pelas suas personagens a mesma indiferença que perpassa por todas as cenas, com pouquíssimos, grandes planos, que, às tantas, quase nos fazem falta, queremos disitnguir os rostos, queremos contemplá-los para, nessa proximidade, os podermos odiar, mas tal não é possível. Tudo isso contribui para a forte impressão que o filme causa, em especial, como se mantivesse o espectador também à distância.
É um filme para se ver no grande ecrã, na sala escura, a sós com as cenas. É, dentre os muitos bons filmes que vi este ano, o melhor de todos eles. Para mim, leiga nestas coisas, uma verdadeira obra-prima e tão forte, que me custou a levantar da cadeira quando terminou. Ficou-me esta reflexão, nestes tempos pouco encorajadores, a arte vai-se revelando uma forma de intervenção, de despertar para a proximidade do mal, para a emergência da empatia, e isso é uma coisa boa.
Vale a pena ver.
Fica a vontade de ler também o livro.