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Livros para adiar o fim do mundo

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Livros para adiar o fim do mundo

17
Mar25

#2/2025 - Eu canto e a Montanha Dança, Irene Solà

livrosparaadiarofimdomundo

Eu Canto e a Montanha Dança

192 páginas

Cavalo de Ferro

Não sei se ler é o melhor remédio, sei que é um bom remédio. Ler é tudo o que já se disse e um pouco mais que cada um de nós acrescenta. Ler, no caso deste Eu canto e a montanha dança,  é uma experiência estética que agrega beleza e poesia, como se fossem coisas diferentes. Ler é flutuar fora do tempo e do espaço e ao mesmo tempo num tempo e num espaço que é recriado pelas palavras que fluem, que preenchem a nossa perceção. Ler pode ser e é uma experiência intensamente sensorial.

Se houver alguém com paciência para ler estas palavras, não será para encontrar aqui a sinopse de um livro. Decerto procura um motivo para ler e, em particular, para ler este livro. Muito brevemente, o enquadramento da narrativa - atenção não da ação, não das palavras, porque tudo neste livro é complexo e tecido de várias camadas, daí que fuja de expressões redutoras, procuro uma forma abrangente de dizer - são os Pirinéus, eles também personagem.

O que torna este livro objeto a ser lido é, em primeira instância, a forma como memória e identidade nele se fundem: tudo é espaço de convergência - as pessoas, os animais, a natureza, as plantas, as nuvens, a chuva e o raio, os fantasmas, os seres feéricos e mágicos, míticos e imaginários. Tudo se revolve numa espiral que se refaz, não há acaso, não há exceção, não há individualidade, é uma longa e inexorável cadeia que tudo une e interliga.

Os lugares aqui descritos são aldeias recônditas, simultaneamente antiquíssimas e de hoje, nelas vivem homens e mulheres que têm o domínio dos silêncios e da distância, mais de ontem do que amanhã. Pendularmente situados entre uma espécie de panteísmo que é de inspiração antropomórfica. Essa característica contribui para a polifonia do livro, todos os seres são sujeito de narrar, todos contribuem para a composição final, todos convergem.

A composição do romance convoca e desafia o leitor, que não pode ser passivo, tem de ter atenção plena, tem de recompor, reconstruir, reestabelecer a linearidade que a narrativa fragmentou, é agente, é co-narrador.

É um romance belíssimo, no qual se cria uma atmosfera de lenda e de saga, de fantástico e de maravilhoso, de linguagem que narra poetizando o objeto contado. É mesmo muito bonito, como os olhos do corço, é arguto como as nuvens, poético como os montanheses que não escrevem as suas poesias, antes as dizem, misterioso como as mulheres de água, intencional, como as bruxas, frágil como as suas personagens, marcado pela memória como tudo e todos. Todos estes elementos ali constam, pelo meio é possível reconhecer uma história, mas esta é parte e não fim.

04
Mar25

#1/2024 - Ainda estou aqui, Marcelo Rubens Paiva: da importância da memória

livrosparaadiarofimdomundo

Ainda Estou Aqui

D. Quixote

270 páginas

Começava a falar-se com insistência sobre o sucesso do filme, realizado por Walter Salles e protagonizado por Fernanda Torres, homónimo deste livro, quando me apercebi que a fita era baseada num livro. Ora havendo um livro, diz a ciência - a partir de estudos realizados por leitores que são cinéfilos -, que o livro é quase sempre melhor que o filme. Daí que comecei pelo livro. Ao dia de hoje, já depois do Oscar para melhor filme estrangeiro, ainda não vi o filme, estará para breve, mas li, isso sim o livro. Desfaço já as dúvidas: gostei muito. Em termos de significado está ali a nível do Somos o Esquecimento que seremos. Aliás uma análise comparativa dos dois daria um estudo muito interessante. Um dia destes, curiosamente, apercebi-me que Carlos Magno, o apresentou como sugestão de leitura no momento do seu comentário semanal na CNN. E bem, e bem, a recomendação é pertinente.

Ainda estou aqui é um livro de memórias sobre a memória de Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice Paiva e de Rubens Paiva. Glosando várias abordagens sobre a memória, a que conservamos, a que perdemos, as que devemos preservar e resgatar, a propósito da doença da mãe, que tem Alzheimer, de cujas brumas lhe é cada vez mais difícil voltar. Com esse  mote, Marcelo Rubens Paiva vai resgatar a luta da mãe contra a ditadura e contra outras formas de opessão, assim como a história da sua família, para sempre condicionada pelos acontecimentos de 1971, em resultado dos quais o pai foi preso, durante os tempos da ditadura no Brasil, vindo a morrer na prisão, sem que a família tivesse conhecimento do seu destino, tendo de esperar longos anos até que a versão oficial fosse finalmente desmentida e que a verdade emergisse para que a família fizesse enfim o luto, para que eunice pudesse enfim ver esclarecido o seu estatuto civil.

Por um lado, temos essa imaersão nos tempos da ditadura e somos confrontados com os desmandos do autoritarismo, com a crueldade de um regime que, obviamente estava mais preocupado com a sua sobrevivência do que com a segurança dos cidadãos. Mais uma vez, a literatura recupera, expõe, resgata do esquecimento episódios que nunca deviam ser esbatidos para que não corramos o risco de ver a história repetir-se... e, no entanto, eis a história a rir-se na nossa acara, a repetir-se e a reinventar-se. É um libelo a favor da cidadania, da liberdade, da justiça e da humanidade.

Por outro lado, temos a figura de Eunice Paiva, quando casada, esposa a caber dentro de um certo modelo de mulher, mãe de cinco filhos, sem profissão. Depois da sua travessia pelo horror de se ver presa, assim como a sua filha mais velha, no mesmo dia em que o marido foi preso, vindo a morrer em resultado da tortura, Eunice empreende um longo caminho de resistência, que passa também pela sua reinvenção enquanto mulher e quanto ao seu papel na sociedade. Volta a estudar, torna-se advogada, defendo os direitos dos indígenas e procura a verdade sobre o que aconteceu a Rubens Paiva de maneira insistente e persistente até, muitos anos mais tarde, a conseguir e... uma certidão de óbito.

Eunice personifica a resistência, assertiva, digna, orgulhosa e convicta. É uma resistência sem concessões, que recusa a vitimização, cujo expoente máximo - já confundindo o livro com as muitas imagens do filme, com a fotografia que é capa do livro e cartaz do filme - é a célebre frase "Vamos sorrir. Sorriam", pronunciada por Eunice, quando a família é fotografada para uma revista, já na ausência de Rubens Paiva, recusando-se a ceder perante os desvarias de uma ordem que vinga pela força. O livro dá conta da sua coragem e dignidade públicas, em oposição ao sofrimento e às lágrimas privadas.

Vale a pena ler, porque precisamos de conhecer para avaliar, de lembrar para evitar, de nos comovermos para podermos recusar, de nos mantermos alerta. São estranhos os tempos que vivemos, talvez devamos sorrir também como forma de resistir.

Vou agora ver o filme e depois hei de escrever sobre ele.

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