#21/2020 - Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes, Mathias Énard, é o domínio da linguagem, senhor
Editora Dom Quixote
Páginas:159
Género: romance histórico (mas em bom, muito bom)
Comprado, graças a Deus! Senão teria de o comprar depois de o ter lido.
O interesse por este livro veio de uma lista deveras interessante que vi no sítio do Sapo, por ocasião do Dia Mundial do Livro e que era uma espécie de caixa de chocolates: uma lista com dez grandes obras com menos de 200 páginas para ler de um fôlego. Claro que copiei a lista para o meu caderninho com muita aplicação, cheia de vontade de os comprar a todos. Eu me confesso: experimetei colocá-los todos no carrinho da Wook, só para ver quando dava... depois desisti, mas com relutância. Depois fiz outro exercício, fui eliminando aqueles que achei que podiam esperar e sobrou este, em boa hora.
Defina este livro numa só palavra: MARAVILHOSO!
Apresente uma só razão para recomendar este livro a um amigo: o domínio magistral das virtuosidades da linguagem. Li devagar, saboreei deliciada cada frase, quase cada palavra. Decidi não o colocar na estante para o poder ler outra vez
Resuma o livro com uma metáfora: uma jóia perfeitamente engastada e lapidada.
Defina o livro através de um símbolo: a ponte, as pontes, as projetadas, as que nunca se lançam, as que unem, as que estendidas nunca representam a junção.
Este livrinho ficciona a estadia do grande Miguel Ângelo Buonarrotti na Constantinopla do Grão-Turco, arriscada heresia. O momento em que o escultor desafia o Papa, pondo em risco a sua carreira, dando mais motivos às muitas invejas que se movem contra si, é igualmente o momento em que o Ocidente e o Oriente se defrontam. A visão de Constantinopla, diversa, dispersa, rica, opulenta, culta e heteróclita atinge a visão do homem do Renascimento, preso ainda às grilhetas do cristianismo, ao medo de perder a alma e à doce tentação de se deixar ir.
A obra está continuamente a reenviar-nos para as referências culturais do Renascimento e do próprio ocidente, bem como para esse lugar do mundo que continua a ser a foz onde desaguam dois mundos diamentralmente opostos: o ocidente e o oriente, a Europa e a Ásia, primeiro lugar da globalização. As referências à multiculturalidade da cidade de Constantinopla são recorrentes: gregos, judeus, genoveses, florentinos, latinos, refugiados de Granada, após a tomada do Reino pelos Reis Católicos. A obra resulta como a partícula do Big Bang, pequenina, mas carregada de significado, tal como é frenética e, ao mesmo tempo, marcada por uma certa placidez e vagares ritualizados, a cidade fascinante de Constantinopla. É toda uma Geografia destes tempos de ouro para a cultura, no entanto, mergulhados nas mesmas hesitações, confrontos, dúvidas, fraturas que até hoje não só não cicatrizaram como antes se parecem ter reaberto expondo uma ferida infetada.
Depois, é verdadeiramente, o fascínio da linguagem, servida com a delicadeza de um prato exótico, com uma riqueza sensorial que satura os nossos sentidos. Partindo das listas que Miguel Ângelo anota no seu próprio caderninho, cada palavra tem o aroma das especiarias, a suavidade dos tecidos ricos, a harmonia dos perfumes, o brilho das jóias. Apetece lê-las em voz alta, sentir a espécie de euforia dos sentidos que nos despertam ao mesmo tempo que parecem excertos de versos compostos pelo poeta que é também personagem do livro.
Por fim, o fascínio desta leitura vem de um certo encantamento que resulta de uma hábil, sábia e inteligente fusão de História e Ficção, que assenta também na paródia dos registos histórico, administrativo, poético, biográfico, memorialístico. Todos estes modos de dizer se fundem, se mesclam inebriando mais uma vez a perspicácia do leitor. A nota final, longe de tirar o encanto ao imaginário que se construiu ao longos destas curtas páginas, antes é mais uma nota de surpresa que torna o livro e a sabedoria com que foi escrito ainda mais cativante.
Para quê gastar aqui mais palavras? Se isto não vos convence a correr para o ler, nem sei para que o escrevi.
É - poucas vezes digo isto - a jóia da minha estante. É - ainda digo isto menos vezes, porque há tantos bons livros na vida - um dos livros da minha vida.