#2/2021 - A Guitarra Azul, John Banville: da memória como tema literário
Porto Editora
239 páginas
Leitura terminada
Este romance andou por aqui sem estar terminado cerca de dois meses. Ia tão bem e, de repente, pu-lo de parte. A razão por que ponho um livro de parte pode ser tão ridícula como querer ler e não me apatecer subir as escadas para ir buscar o livro que estou a ler e começo a ler outro, coisas assim. Faltava muito pouco para o terminar, não encontro explicação.
John Banville foi dos poucos escritores de quem li mais de um livro em 2020 (2021...?). Gostei tanto de O Mar, que comprei este A Guitarra Azul. Narrado na primeira pessoa, acompanha o fluxo da memória de Oliver Orne, desde o momento em que foge de casa, devido ao facto de ver descoberta a relação extraconjugal que mantém com a mulher do seu melhor amigo. Desiludam-se, o livro é muito mais do que a descrição deste triângulo amoroso, é sobretudo uma viagem ao centro de si mesmo, crua, despudorada, sem filtros, como já contecia no romance anterior. O narrador/protagonista abre o romance refeindo-se à sua cleptomia, o desejo de possuir coisas dos outros, apropriando-se delas de maneira subtil e dissimuladamente. Polly, a sua amante, surge como mais uma posse que se lhe impõe a partir de um jantar em que Oliver fica quase obcecado por ela.
Partindo deste motivo, Olly revisita a sua infância, a relação quer com o pai quer com mãe, mas também com a irmã, com a sua arte - é pintor - e com o bloqueio que o domina no presente, o seu casamento com Glória, o impacto que a morte da sua filha teve sobre ambos, entre outros episódios que, longe de o caracterizarem, mais esborratam as tintas e mais diluídas parecem as linhas.
Outro aspecto interessante, e que eu valorizo sempre muito nas minhas leituras, é o constante reenvio para objetos estéticos exteriores ao próprio livro: obras de pintores famosos, poemas, livros, que continuamente espelham o momento ou o episodio abordado no livro. A memória nas suas diferentes aceções é tambem um tópico literário que me desperta muito interesse e, neste romance, cruzam-se várias memórias. Também a força da linguagem, a mestria no domínio das palavras, medidas e pesadas para ocuparem o seu lugar na frase - aspeto reconhecido em muitas das críticas sobre este livro - é notória. Aplica-se a estas páginas a metáfora da filigrana: delicados fios que são soldados uns aos outros para formar um objeto muito maior, um padrão, é isso que acontece neste livro.
A guitarra azul foi mais uma experiência de verdadeira literatura, um objeto estético exigente.
PS. Há também no livro uma ambiência tipicamente irlandesa: do chá, do frio, da chuva, das relações sociais, de que também gosto muito, talvez por causa das minhas memórias das leituras de Enid Blyton.