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Livros para adiar o fim do mundo

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

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Livros para adiar o fim do mundo

12
Jan23

#2/2023 - Os Anos, de Annie Ernaux: mapeamento de uma era.

livrosparaadiarofimdomundo

Os Anos

Livros do Brasil

196 páginas

1. Os livros do Brasil são míticos para mim. Estão intimamente ligados à minha juventude, saída dos livros infanto-juvenis. Estão cristalizados na minha memória, na livraria da cave de umas galerias que existiam na Nazaré, onde passava a quinzena de agosto. Simbolizam o primeiro contacto com a literatura de adulto e contribuiram definitivamente para a minha formação literária e cultural. 

2. Nunca tinha ouvido falar de Annie Ernaux, até à distinção com o Nobel, e não me envergonho disso, porque também não sou leitora de primeira viagem e sou cética quanto a prémios e publicidade eufórica. O que me deixa uma enorme preocupação, depois de ler este livro: quantos mais escritores brilhantes e livros fundamentais ainda não entraram nomeu destino. Annie Ernaux passou a ser uma autora a conhecer. No momento em que escrevo, repousa ao meu lado, à espera de ser lido, o segundo livro que adquiri: O Acontecimento. A verdade é que fui lendo em diagonal alguns comentários muito apreciativos sobre este Os anos e deve ter constado de algumas das listas que gosto sempre de consultar.

3. Sintomaticamente - que sabemos nós sobre conjugações astrais? - Os Anos, editado por Livros do Brasil, devolveu-me esses tempos de leitora em formação, versando sobre os meus anos de formação, sobre a minha identidade.

4. Assim que comecei a ler este livro, tomou-me uma sensação que perdurou ao longo de toda a narrativa: a de identificação, a de reconhecimento. Eu conheço a realidade descrita. Embora mais jovem que a personagem do livro, dado o atraso de Portugal em relação à França, não parece ter havido grandes diferenças entre a década de 50 em França e a de 70 em Portugal. Este romance é como uma topografia dos anos que corresponderam à segunda metade do século XX e a primeira década do século XXI. Os grandes acontecimentos que marcaram uam memória coletiva, global, estão lá e percebemos pelo texto a forma como nos condicionaram, como nos formaram, como os vivemos e como, muitos de nós, os interpretamos. Ler Os Anos é um exercício de revisitação, de conforto, de quem acena a cabeça e confirma, murmurando, foi assim, foi, lembro-me disto, é verdade...

5. A técnica narrativa do romance é interessantíssima, já que a personagem feminina que assume o protagonismo - será protagonismo?- vai-se desenhando no espírito do leitor conforme se vai materializando nos registos que emergem do texto. A ver se consigo explicar: o narrador constrói a a personagem como quem consulta um velho album de fotografias, as mais antigas, as poses, o olhar, a roupa, mas a presença da personagem na narrativa começa por ser imprecisa, surge de tempos a tempos, é mais uma fotografia e vamos acompanhando mais o seu desenvolvimento físico do que espiritual, ou cultural. Com a passagem dos anos, essa figura difusa vai-se precisando, cada vez mais nítida, ocupando cada vez mais espaço na narrativa e já tudo se centra na forma como, já madura, perceciona, problematiza, vive e interpreta a passagem do tempo e os acontecimentos que o marcam. Daqui resulta que o romance está estruturado como se fosse - e é - um exercício de remomoração, em que os acontecimentos mais afastados no tempo não podem ser relatados a não ser por interposta pessoa, isto é, por aproximação através de marcos, recuperados a intervalos mais ou menos longos. Tudo é sobre memória. 

5. Há outro grau de identificação: a personagem é feminina, é professora e vai-se aproximando do livro a haver ao longo de um percurso de vida em que a ideia do livro vai aparecendo como um sintoma intermitente. Até que o livro se torna o projeto para o qual se volta e é quase como se a narrativa se fechasse sobre si mesma, pois o texto é o resultado da concretização desse projeto que se vai avolumando ao ritmo das experiências vividas. Há um gosto experimental pelas palavras a que não pude fica indiferente também. 

6. Não tenho bem a certeza se era isto que queria escrever, mas, por vezes, há qualquer coisa que fica sempre lateralmente à nossa perceção, que parece não poder ser alcançado, que escapa ao logos. Fica esta tentativa de dizer.

7. O ano continua a correr bem: boas leituras!

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