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Livros para adiar o fim do mundo

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

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10
Nov21

#22/2021 - Ciclo Tatiana Salem Levy: A chave de casa

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A chave de casa

Palavras-chave: viagem, memória, amor, mãe, abuso, polifonia, fragmentação, passado, reconstrução, diáspora, exílio, círculo.

O primeiro romance de Tatiana Salem Levy é surpreeendente pela segurança com que a autora conduz a narrativa, pelo domínio da linguagem, pela utilização dos recursos narrativos oferecidos pela memória, a polifonia e a fragmentação.

Contado na 1ª pessoa, mas são várias as pessoas, há uma vocação clara para a polifonia o que, enquanto estratégia narrativa, implica automaticamente o leitor, a quem cabe montar a história, ligar os fragmentos, estabelecer as relações, preencher as lacunas e imaginar o que fica percetível na gestão dos silêncios da própria história. Daqui resulta um livro que se estilhaça, tornando-se vários livros, várias histórias que são, na verdade, a mesma história: o passado de uma das personagens. Descendente de judeus, o povo da diáspora, o povo perseguido, em constante movimento. O avô da personagem que viaja para Esmirna tinha partido de Esmirna, a personagem que desembarca em Lisboa, apesar de brasileira, tinha nascido em Lisboa, cidade onde os pais se tinham exilado por causa da ditadura, outra forma de diáspora, mas a mesma fuga à perseguição e aos desmandos da violência do homem contra o homem.

O amor sob as suas múltiplas formas. O amor proibido, que leva à morte pelo desespero; o amor e a devoção pela figura da mãe que persiste na memória, mesmo após a morte, o amor que não é amor, mas que prende, oprime e se torna palco da maior violência e do maior abuso; o amor catártico que é uma forma de resistir e de sobreviver, o amor possível, o amor esperança.

A literatura e a escrita como forma de viver e de reviver, mas acima de tudo como forma de ser: "Se não sangra, a minha escrita não existe. Se não rasga o corpo, tampouco existe. Insisto na dor, pois é ela que me faz escrever". Esta passagem parece-me emblemática. Encerra em si a negação de uma certa forma de literatura, aquela que dizemos leve, de mera fruição. Não, a escrita e o objeto que daí resulta não é para ser um lugar de conforto, não é para nos acolher, é para nos fustigar, para nos abalar, para nos levar tão longe quanto possa ser dito. Esta é uma característica da obra de Tatiana Levy, a linguagem quase brutal, crua, sem dourados, sem concessões. O indizível, como a própria autora afirmou, é para ser dito, porque é tangível e não pode ser oacultado. Tudo deve ser exposto de maneira a interpelar-nos a arrastar-nos perante um quadro que não quereríamos ver, mas perante o qual somos colocados sem qualquer piedade. É uma escrita que é didática. Em contraste, também lá está uma certa poeticidade, um quase fantástico e etéreo, em especial na relação que a filha estabelece com a mãe, mantendo-a viva pela persistência da memória, amando-a devotamente.

É um livro poderoso, irresistível, só tem um defeito: está esgotado e isso, por si só, é uma injustiça, porque este livro merece ser lido, relido e discutido.

 

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