#29/2020 - Milkman, Anna Burns
Editora: Porto Editora
384 páginas.
Comprado em dezembro, um dia de inverno ameno, na Bertrand do Chiado, num tempo em éramos muito felizes e não sabíamos. Queria-o muito e, no entanto, esteve longos meses em estágio cá em casa. Havia sempre outras leituras que se antecipavam e muitas delas nem valeram assim tanto a pena e este livro não merece esperar para ser lido.
Depois vieram esses curtos dias de agosto em que li desvairadamente e o Milkman de Anna Burns foi, felizmente, na voragem.
O mais marcante neste livro é o facto de não haver nomes, na verdade, não há grandes referências em que escorar a nossa leitura. E elas não são necessárias. As que existem, "a religião deles", a "nossa religião"; "o país deles", "o nosso país", entre outras, permitem-nos situar-nos talvez numa Irlanda fraturada pelos conflitos civis e religiosos. O facto de nem os lugares nem as pessoas terem nomes torna a ambiência do livro mais abstrata, mas também mais universal e é essa universalidade conseguida que faz desta leitura simultanemente localizada e datada, mas também atemporal, quase uma distopia.
Essa feição distópica faz deste romance de Anna Burns um relato profundamente atual, não há como não estabelecer um paraleo com a forma como as versões a preto e branco da realidade nos vão sendo impostos, como todas as discussões são extremadas e radicalizadas, como o não estares de acordo comigo significa que tens de ser conotado com determinada fação, ou partido, ou visão, ou sim, ou não. Quando a realidade é caleidoscópica, complexa, caótica. Quando as coisas mudam a um ritmo alucinante, quando as verdades são desmentidas pelos factos quase de minuto a minuto, quando as certezas são abaladas. Há depois a denúncia do impacto e da força que as "versões" das histórias têm sobre as vidas das pessoas, condenando-as a um silêncio, porque uma versão estabelecida não pode nunca ser desmentida e o mal causado nunca mais pode ser reparado e... ninguém se importa com isso.
Outro aspeto singular neste livro, que não é propriamente único, mas resulta muito bem, é o facto de a narrativa estar filtrada pelo longo discurso/fluxo de consciência da jovem que a protagoniza, o que o torna mais ingénuo, porque há um véu de incompreensão comum a quem se encontra no centro dos acontecimentos, mas que torna mais óbvia para o leitor a crueldade que se abate sobre a personagem e que só com o recurso a esta estratégia narrativa emerge do relato como neblina sobre a superfície da água.
É uma leitura desafiante - não digo difícil para não afastar ninguém deste obra: genial, única, crua e importante, muito importante.