#31/2020 - O Mar, Jonh Banville
Sextante Editora
198 páginas
Imagine-se o cenário: uma praia do sudoeste alentejano, uma manhã de nevoeiro, sem vento, a temperatura amena, a praia semideserta, uma cadeira com encosto reclinável e um livro na mão. É o paraíso na terra.
Foi neste cenário que abri e encetei a leitura do romance de John Banville e, acredite-se ou não, a página de abertura do romance atira-nos para um cenário muito semelhante. A ação passa-se num local de férias, de veraneio, há areais, o mar encrespado, cabelos molhados brincadeiras, piqueniques e uma tensão atmosférica que se vai adensando.
"Foi no dia da estranha maré que os deuses partiram. Durante toda a manhã, sob um céu turvo e opaco, as águas da baía foram engrossando, atingindo alturas jamais vistas. As pequenas vagas insinuavam-se pela areia crestada que anos a fio apenas a chuva humedecera e lambiam a base das dunas." É esta a abertura do romance e há, em minha opinião, aqui um leitmotiv que ilumina a sua construção, toda ela ligada a um exercício de memória que, tal como a maré, engorssa, invade, alastra e submerge. O passado que inunda o presente. A rememoração como experiência renovada, mas de cariz interpretativo. De facto, Max, a personagem principal, refugia-se na pequena localidade onde costumava passar as férias quando jovem por causa da morte da sua mulher. Mas a memória, além de lhe trazer os momentos vividos com ela, um amor de toda a vida, devolve-lhe ainda um verão marcado pela iniciação ao amor, mas também à perda, ao risco, à morte.
Alguns dos livros que li ultimamente tiveram em comum o facto de abordarem a superação de uma perda que a morte originou. Este inclui-se aí. O viúvo Max, atingido por essa dor, recorda em simultâneo a alteração drástica da sua vida a partir do momento em que a Anna, sua mulher, é diagnosticada uma doença terminal e a experiência que, da mesma forma, alterou para sempre a sua existência, mas ligada à recordação de um verão marcado por uma série de descobertas, entre elas a pulsão amorosa e também a perda. E os dois momentos do seu percurso entrelaçam-se, cruzam-se, alternam-se com uma maestria que só uma autor sensível, experiente e inteligente o conseguiria: "O passado pulsa dentro de mim como um segundo coração".
Este livro de Banville é uma experiência literária extraordinária, pela forma contida como é narrado, mas conseguindo um condensação de uma certa atmosfera trágica que nos remete para a grandeza dos clássicos. A linguagem é uma dimensão importantíssima para a fruição estética desta obra, mas sem ofuscar o resto, notando-se neste narrador o comprazimento que a forma de dizer exata lhe provoca. Há essa capacidade extraordinária de nos oferecer um relato intimista e reflexivo que confere ao ritmo narrativo a desorganização do fluxo da memória e a reorganização das experiências que só assim se conseguem. Ler este livro é uma forma de viver a arte que poucas vezes nos é possível.
... o sol declina, afinal tinha conseguido romper as nuvens e brilhou impiedosamente sobre os veraneantes. A praia volta a esvaziar-se, já se retiraram as crianças e as suas risadas estridentes, o mar aquieta-se num espelho dourado. Fecha-se o livro. Regressa-se de outras paragens onde os dias de verão nunca têm esta luz de "brancuras quentes". Um suspiro solta-se. Um dia perfeito.