#35/2020 - Tomás Nevinson, Javier Marías: caleidoscópio do bem e do mal.
Alfaguara
656 páginas
Foi agosto outra vez e repeti um livro de Javier Marías, desta vez, Tomás Nevinson, que dialoga com Berta Isla, que foi o meu agosto de 2023. Desta forma, Javier Marías vai-se consolidando como escritor de culto. Só por causa das coisas, logo de seguida li Coração Tão branco, mas vamos com calma que não foi desse que vim aqui falar.
Comecemos pela minha introdução à obra de Marías. O primeiro livro dele que me veio parar às mãos foi Enamoramentos, que me enfadou, de maneiras que não terminei a leitura. Senti uma espécie de Marías exclusão, pois era um escritor que via sempre muito bem cotado e a mim nada... Depois li Berta Isla e fiquei cheia de vontade de ler Tomás Nevinson, e agora eis-me aqui rendida a este escritor: complexo, intrigante, profundo, inquiridor.
Tomás Nevinson é o marido de Berta Isla, que entra para os serviços secretos britânicos por circunstâncias estranhas. Dada a sua profissão, ele é e não é, está e não está, existe e não existe, faz e não faz, como tão bem o define o seu chefe Bertram Truppa. Em Berta Isla, Tomás é quase personagem secundária, como se o escritor mimetizasse no romance o secretismo da sua profissão. O leitor sabe o que Tomás faz, mas isso é traçado a pinceladas vastas e genéricas, nunca uma missão sua é devassada, só a sua intermitência na vida de Berta. O que é trazido à luz é o impacto dessa intermitência na vida de Berta, essa descontinuidade que a desagrega e a vai indefinindo na sua condição de mulher de Tomás.
Neste volume, Tomás é o protagonista, é Berta que é deixada na sombra. Regressado à ação, mais uma vez devido a Bertram Truppa, Tomás aceita uma missão, que lhe devolve algum sentido à existência. No entanto, o início do livro é decisivo para a tese que se vem a enunciar: havendo a possibilidade de se ter assassinado Hitler e, dessa forma, impedindo todo o mal que conhecemos, esse ato é legítimo ou ilegítmo, ou como conclui uma das personagens, estando o nosso destino traçado há alguma forma de lhe escaparmos? Esta questão, podemos decidir quem vive e quem morre e em nome de que valores, estrutura toda a narrativa. Tomás terá de decidir para levar a bom porto essa missão, ter esse poder enorme, legitimado até, sobre se uma mulher pode viver ou se deve morrer.
Para além desta equação que estrutura a história, a qualidade do livro está definitivamente na escrita. Marías é um escritor-leitor, percebemos que muita da sua cultura e erudição são matérias primas que cimentam a escrita. Todo o livro é diálogo, exegese, questionamento sobre a ambiguidade em que nos movemos, quem está do lado do bem e do lado do mal, quem tem legitimidade e quem não a tem, sendo os serviços secretos, ao serviço de quem efetivamente estão, e se em lugar de serviços secretos a bem de todos, forem, antes, interesses secretos, a bem de gente obscura? Essa nota de ambiguidade mantém-se em múltiplos aspetos do livro, até na cidade do Noroeste de Espanha, recôndita, provinciana, para a qual Nevinson se muda, e que nos interrogamos continuamente acerca da sua localização, será Ourense, será Lugo, será outra qualquer, ou um pouco de todas elas.
Enfim, será difícil despertar o interesse para a leitura, quando se escrevem textos longos, de maneiras que me fico por aqui, talvez incompleta, talvez ambígua, mas rendida a Javier Marías, que se vai agigantando nos meus gostos de leitura. Vale a pena ler.