16
Fev14
365 dias depois (III)
livrosparaadiarofimdomundo
Estive longe algum tempo, oautocarro já saiu da autoestrada. Segue por uma estrada que é bonita, ladeadade plátanos, corre sobre uma elevação de que se avista uma vale. A perder devista, terrenos agrícolas e casas dispersas. Alguns animais. A cidade ficou láatrás. A cadência do andamento vai-me entorpecendo. Fecho os olhos e entro numestado de semi-vigília que não me deixa entrar num sono profundo. A dor nopescoço desperta-me, é preciso que me ajeite melhor. A dor física tornou-se amaterialização de todas as outras dores. Diz-se que só experienciamos uma dorde cada vez, mas a dor física compatibiliza-se com o sofrimento e a angústiaque me vão torturando. As fraturas nos ossos curaram-se, os rasgões na pele desvaneceram-se,os golpes profundos fecharam-se e deixaram linhas pelo corpo que contam a minhahistória. A ansiedade e a angústia, pelo contrário, só sabem crescer,alimentam-se da minha vontade, esgotando-a pouco a pouco e vou mirrando dentrode mim. Por isso não me importo que o pescoço me doa, que tenha que me mexerdevagar e com cuidado, porque os meus ossos ainda estão a consolidar-se uns nosoutros, porque há linhas no meu corpo que continuam a doer se lhe toco, só napele não restam sinais. As crostas das escoriações foram caindo e a peleregenerou-se. Eu, essa abstração que habita em mim, não sou capaz de meregenerar. Enfio a mão por debaixo da manga da blusa que trago vestida eprocuro a cicatriz. É comprida, tem um toque estranho, faz um relevo quepercorro com os dedos, conto as marcas dos pontos, são dez. Já não me dói aqui.Sei a cor sem olhar, é rosa pálido. Há outras assim no meu corpo, desenhando ummapa que não me guia para lado nenhum, linhas sem continuidade, interrompidas,um ato falhado. Vou deslizando os dedos pela cicatriz, é um tique que ganhei,como quando se roda um anel no dedo só para se manter as mãos ocupadas enquantose pensa.
A direção que o autocarro tomacoloca o sol do lado da minha janela. A luz é demasiado forte. Corro ascortinas e a penumbra conforta-me. Consigo recostar-me e volto a fechar osolhos, encosto com mais cuidado a cabeça no vidro, apoio-me na mão, o cotovelofincado no braço do banco. Descanso. A mente vagueia outra vez. Agora começo aficar ansiosa pelo fim da viagem, se pudesse apressaria o andamento. Imagino oautocarro em marcha de urgência pela estrada, os carros a encostarem, avelocidade a aumentar. Entrego-me a um jogo que fazia quando era criança, comose pudesse ver-me a deslocar-me no tempo, ver o tempo a decorrer. Daqui a poucomais de meia hora terei chegado, vejo-me, daqui, a descer do autocarro, aencarar a brancura do dia, a encaminhar-me por uma rua que desce em direção àpraia, olho para trás e vejo-me sentada no autocarro à espera que os grãos deareia se escoem na ampulheta. Daqui a trinta minutos estarei a fazer o queantevejo e depois passa num instante. A impaciência borbulha-me no sangue,acelera-o nas veias. É preciso que fique calma. Já sei! Procuro na lista de músicao Verão de Vivaldi. Os primeirosacordes prendem-me logo a atenção. Vou acompanhando as notas, os andamentos eesqueço-me de mim.
O autocarro entra agora numa pequenavila. É a última paragem antes de chegarmos ao destino. Sei que nem chegará adesligar-se o motor. Será uma pausa breve. Abro de novo as cortinas. O dia impiedosode verão vai cedendo. O sol já se inclina. Lá fora, o ar deve ser mais respirável.Ao lado do ponto de paragem há um jardim, plano, arborizado. Combina tão bemcom a música que oiço. Faço mais um quadro, vejo os insetos que volteiam no ar,duas meninas correm, mesmo daqui consigo perceber que estão um bocadinhotranspiradas. Cruzam-se perigosamente com uma bicicleta. Há uma esplanada queestá cheia. Foco-me num homem sozinho que lê o jornal, tem uma chávena de café àsua frente, um copo com água. Os cabelos são ligeiramente compridos, já comalguns brancos. Está completamente absorto na leitura. É interessante. Se eu saísse,levantaria os olhos? Entretanto vejo uma senhora que desceu do autocarro,retira a bagagem, uma jovem encaminha-se para ela. Beijam-se e abraçam-se. Estãofelizes por se reverem. Se eu descer, alguém se encaminhará para mim? Alguém sealegrará com o meu regresso? Disparate, não conheço ninguém aqui. Desce sobremim uma tristeza miúda, como uma chuvinha fraca. Para quem posso eu voltar?Ninguém está verdadeiramente à minha espera em lugar nenhum. A minha família,que tem cuidado de mim, fá-lo mais por dever para com os outros do que porafeição por mim. O simples pensamento de que posso ser uma dever na vida dosoutros acabrunha-me. O motorista reentra apressadamente no autocarro e voltamosa andar. Mais uma vez um balanço pesado. É a última etapa. Mal consigo estarparada. Endireito-me no assento, sem querer, inclino-me um pouco para a frente,procurando inconscientemente acelerar este veículo que teima em mexer maisdevagar do que a minha inquietação.
Sem ver porquê,lembro-me agora de uma outra viagem, desta vez é primavera. Regresso a casa e háalguém à minha espera. Está um homem dentro de um carro estacionado. Vejo-o aseguir com o olhar o movimento do autocarro. É ele que se endireita no assento,crava as mãos no volante. Ainda não me viu. Viu-me agora, sorrimos rasgadamenteum para o outro, aceno-lhe. Quando paramos, sou quase a primeira a pôr-me de pé.Educadamente sou passagem às pessoas no corredor. Tremo ligeiramente. A portavai-se aproximando. Murmuro boa tarde ao motorista com quem cruzo o olhar nomomento de sair. Desço os três degraus e ele está já fora do carro. Quase corremosum para o outro, não nos contemos e abraçamo-nos. Mostramo-nos contidos, mas nãoé assim que nos sentimos. O abraço torna-se mais apertado. Naquele dia, volteipara alguém, houve alegria por eu estar finalmente ali. No tempo em que haviaum sentido, um rumo. Depois as coisas foram acabando, desmoronaram-se e hojeninguém me espera. Sou só eu que vou ao meu encontro.