#38/2020 - O Custo de Vida, Deborah Levy - a nossa humanidade no espelho
Relógio D' Água
138 páginas
Emprestado. Gosto destes "clubes de leitura" informais que nos levam a descobrir autores e textos fruto de um gosto partilhado. Ouvir alguém dizer "gostava que lesses este livro" ou "tens de ler estes livro". Depois, aceitado o repto, vemos que alguém nos conhece. Se lhe emprestarem um livro, isso é amor.
A dado momento no romance, a narradora-autora - a designação faz sentido, porque a voz se refere aos seus livros publicados, às apresentações, às viagens feitas a promovê-los - afirma que deve ao cinema ter encontrado uma técnica para fazer coincidir o passado e o presente. E, literariamente, faz isso quando faz a criança que foi visitar em espanto a casa de família que há de ter, os filhos que há de gerar, o homem com quem veio a casar. Esta passagem, oh, maravilha da literatura, transportou-me para o conto de Maria Judite de Carvalho, "George", em que a protagonista se cruza consigo mesma em diferentes fases da vida, marcadas por nomes diferentes. Nesse conto, como neste livro, há essa fusão fluida entre realidade e ficção, o onírico e o vivido.
O Custo de vida é um texto complexo, riquíssimo de entradas e de verbetes. Pode ser lido como um texto sobre o papel das mulheres, o que lhe está destinado por uma sociedade patriarcal, o que lhe está reservado pela memória biológica, aquele que elas podem escolher em liberdade, sendo que essa liberdade implica sempre sofrimento. Para haver liberdade é preciso quebrar grilhetas e estas nunca são de seda, ou se o forem, prendem mais ainda. Pode ser lido como um texto biográfico, uma profunda reflexão sobre um percurso marcado pela fratura, o antes e o depois, a relação entre uma mãe e uma filha, a dor da perda, das perdas que se somam para definirmos o que somos. Pode ser lido como metatexto, um livro sobre a escrita, do que ela nasce, dos múltiplos diálogos que se estabelecem entre o escritor e o escritor-leitor - acredito que só se pode ser bom escritor se se for um leitor assíduo, compulsivo talvez não, porque as compulsões não deixam margem para outras coisas. Pode ser lido como um relato profundamente humano, soma de todos os outros, que nos devolve a imagem desta voz, autora, protagonista, narradora, mulher em construção, filha, mãe, esposa, mas também a nossa própria imagem, a nossa humanidade despida e feita de dores, de mágoas, de ruturas que é necessário fazer.
Ao longo das horas - poucas para meu desgosto - desta leitura, quis, por diversas vezes, guardar, gravar algumas das frases, dos achados filosóficos, das evidências colhidas, das revelações, das coisas que pensamos, sentimos, somos e que ainda ninguém tinha sublimado em livro para que nos revissemos nelas. Acredito, pela experiência partilhada com quem me emprestou o livro, que há um pouco de cada mulher neste livro, porque, de facto, os nossos papéis são todos muito similares. Talvez o mais penoso seja este: o de nos esgotarmos a serviço dos outros. E, a este respeito, o livro é muito bonito, porque nunca cai nas armadilhas de um feminismo radical, é de uma dignidade que todos merecem, as mulheres e os homens que com elas convivem.
Este livro deixou-me nostálgica, mas de uma forma boa. Houve uma espécie de reconcilaição comigo mesma. Houve um fortalecimento das minhas convicções. Obrigada a quem me trouxe aqui. Este livro fica na minha "prateleira de cima", aquela onde distingo os livros que me constroem.
Leiam, por favor, sem custo não há vida.