#39/2020 - Butcher's Crossing - Jonh Willimas: o vazio dentro de nós
Dom Quixote
304 páginas
Emprestado.
Regressei a Williams por interposta pessoa, que me emprestou generosamente o livro. Tratou-se de uma confirmação, se gostei de Stoner, se delirei com Augustus, voltei a deslumbrar-me com este Butcher's Crossing. Estou rendida a Williams. Que mestria, que domínio da linguagem, que inteligência. Perante este livro, temos uma experiência do belo sem que nele haja a descrição da beleza; do sublime, apesar das personagens estarem em queda; da grandeza, ainda que tudo seja rude e precário; do épico sem que haja heróis.
O ritmo desta escrita é uma imersão na intimidade, devido à ancoragem da história sob o ponto de vista de William Andrews. É sob o olhar deste jovem de Boston, que chega a Butcher's Crossing à procura de uma autenticidade que ele acreditou poder encontrar na franja da civilização. Há aqui uma espécie de mito do eterno retorno, o homem civilizado e aculturado que procura a origem, o éden, a perfeição perdida algures no movimento da evolução. Andrews chega o limite da civilização naquele povoado precário em construção, assente no negócio das peles de búfalo. A riqueza conseguida com esse negócio radica na mais extrema violência do homem contra a natureza, visível nas carcaças de búfalos que pontuam a paisagem, numa atitude predatória que dá ao romance o primeiro cunho universal, atualizando-o nas muitas preocupações com a sustentabilidade que fazem parte do nosso quotidiano. A exploração desenfreada dos recursos e a consequente precipitação na ruína e na degeneração são ciclos económicos que se têm sucedido desde há muito. Regressando ao tópico aqui apontado, o livro leva-nos a uma descida ao mais profundo da alma do homem, numa interrogação que é de índole filosófica: que há dentro de nós, que nos impele e que nos define. A esta questão o livro vai responder com uma crueza que é existencialista. A resposta está nos olhos de todos aqueles que acompanham Williams nesta descida aos infernos.
Há, depois, um outro momento em que se define um outro motivo do livro: aquele em que, atravessando a planura sem fim da pradaria, torturado pela sede e pela fome, numa situação-limite muito próxima da aniquilação, Andrews dá-se conta de um desprendimento de si mesmo, uma espécie de dormência em que paira, semiconsciente, adormecido, ao mesmo tempo que se tranfigura e se metamorfoseia. Essa ideia de metamorfose vai pontuando o percurso desta e doutras personagens. Em Miller, enquanto abate os búfalos, em Charley, depois da tempestade, em Wiliams depois dessa travessia, mas também depois do regresso a Butcher's Crossing, após a expedição em que participa para caçar búfalos. Mas a metamorfose é constante, é imagem também da própria natureza que, mudada devido a um forte nevão, se afigura estranha e hostil, sem referências, ferindo os olhos pela luz intensa e a mente pela impossiblidade. É a metamorfose também daquele sistema económico, precário e incerto, que acentua ainda mais a desagregação destas figuras, a quem, uma vez mais foram supridas as coordenadas que orientam a sua existência.
Butcher's Crossing assume também um recorte épico, não só por equacionar a coragem, a força, a resliência do homem, "bicho da terra tão pequeno", face à grandiosidade e força da própria natureza. Mas esse recorte vem também da descrição a largos sorvos da grandeza da paisagem do oeste americano: as montanhas inóspitas, o vale só brevemente pisado pelo homem, a pradaria infinita, a força da tempestade e, "pormaior", o facto de a natureza ser capaz de apagar os vestígios dessa presença estranha, sem que possa anular a marca da morte que a ganância deixa perpetuada na paisagem, são de novo as carcaças dos búfalos, abandonadas aos abutres, aos insetos, aos lobos.
Poder-se-á perguntar, porquê ler um livro sobre o oeste selvagem, numa visão que desconstrói muitos dos mitos a ele associados? Por isto: pela sua universalidade, as grandes questões que o romance coloca, respondendo ou não, são tranversais à existência humana, deixando-nos numa espécie de encruzilhada. Na verdade, naquela expedição, Miller vai em busca do passado, Andrews vai em busca do futuro e nem um nem outro encontram aquilo que procuravam. E ainda por isto: pela sua atualidade, seja pela efemeridade dos ciclos económicos, seja pela necessidade de repensar a relação do homem com a natureza. Mas, sobretudo por isto: pela magia desta escrita sem comparação, deste domínio das palavras com a medida certa que nos enfeitiçam como uma espécie de sortilégio. É um livro que nos prende como o anel de O senhor dos anéis.