#43/2020 - A vegetariana, Han Kang: um livro perturbador
Editora: D. Quixote
Páginas: 190
Da biblioteca.
Depois de Atos Humanos, fiquei decidida a ler os restantes títulos de Han Kang, por ter considerado que é uma escritora definitivamente interessante. No entanto, precisei de alguns meses para lá regressar, porque o primeiro livro lido foi assim para o pesado, de "digestão difícil", mesmo para mim que gosto de literatura a sério e não só de entretenimento.
Numa passagem pela biblioteca, este Vegetariana, atravessou-se-me no caminho e pensei que já podia regressar a esta autora. É um romance pouco extenso, mas, como a partícula do Big Bang, carregadíssimo de sentido. O ponto de partida do livro é mais ou menos conhecido e se não é consta da sinopse. Trata-se da decisão abrupta de uma jovem mulher de deixar de comer carne, sem que se pressentisse o enorme impacto que essa decisão tem sobre as pessoas que com ela convivem. A estrutura do texto é fragmentária, como voltará a ser em Atos Humanos, já que este último é posterior a este romance. São três os pontos de vista assumidos: o do marido, o do cunhado e o da irmã, visões complementares dos efeitos trágicos que esta decisão tem sobre a vida das personagens.
O que, de facto, me agarrou neste livro é a forma como cada uma das personagens vive imerso na sua bolha existencial, é um livro sobre a incomunicabilidade. Yeong-hye não consegue explicar a sua opção, à partida porque sabe que não será compreendida, e não é, ninguém a consegue compreender, embora ninguém fique indiferente. Quem se aproxima mais dessa compreensão é a sua irmã, que se vai apercebendo que a pressão que o quotidiano exerce sobre ela é da mesma índole do exercido sobre a irmão, só que a segunda se deixou ir, cedeu a essa pressão e, indiferente a todas a formas de pressão, tentou encontrar uma saída para todas as formas de violência com que foi convivendo. A dada altura, no romance, afirma-se que as personagens se moviam como se estivessem no vácuo e esse dado permite descrever a impresão com que se fica do livro: cada uma das personagens ensimesmada, introspetiva, voltada para a a sua vida interior, tragicamente só, embora partilhando espaços, vidas, sexo, alimento. Todos se desconhecem, todos se (in)compreeendem, todos embatem contra o limite invisível da bolha em que vivem suspensos.
Há outro aspeto, que se prende com a forma como todos tentam "ajudar" a vegetariana, mas todas essas ajudas são outras tantas formas de violência: a do pai, a do marido, a do cunhado, a dos enfermeiros, a dos médicos, porque todos a querem forçar a voltar à tribo, a fazer parte, a adotar a mesma forma de viver, a reintegrar-se. A vegetariana resiste até abdicar da própria vida. Não quer comer carne, não quer comer de todo, quer ser árvore como forma de evitar toda a violência com que foi vivendo. Esta é a grande questão que o livro me colocou, quando temos a pretensão de salvar os outros, a apartir de que momento isso não é afinal uma forma de os condenarmos, de lhe impormos um sofrimento bem maior do que a morte?
Por fim, tal como na outra leitura, é a lingugem, senhores, a linguagem é um supremíssimo íssimo íssimo bem na escrita de Han Kang. Apesar da crueza, do choque, da repugnância até, que visceralmente experimentamos na leitura, tudo é emoldurado numa expressão linguística que é quase poética, inefável, sublime. Daí que este livro seja, ainda assim, um texto belíssimo, estético e ético sobre a nossa miséria humana.
Mais um livro que é muito mais literatura que entretenimento. Vamos ao terceiro da autora? Vamos, pois.