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Livros para adiar o fim do mundo

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

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Livros para adiar o fim do mundo

10
Fev21

#5/2021 - Rabos de lagartixa, Juan Marsé - como o leito seco de um rio.

livrosparaadiarofimdomundo

Wook.pt - Rabos de Lagartixa

Editora: Dom Quixote

304 páginas

Continuo bem comportada: este é um dos livros que tinha em casa sem o ter lido ainda. Já não me lembro quando o comprei, mas foi em 2020, sempre mais olho que barriga no que toca a livros.

Rabos de Lagartixa teve o azar, a pouca sorte, vá, de ser o livro que se seguiu a O barulho das coisas ao cair, o que me dificultou concentrar-me nele. No entanto, assim que me consegui embrenhar na sua história e na escrita - nem sempre fácil, ou melhor, para não desencorajar ninguém, a que é preciso estar muito atenta - ocorreu-me quase como um leitmotiv aquilo que Garrett escreveu acerca da simplicidade da sua obra-prima, Frei Luís de Sousa: dizia ele que, com um enredo simples, sem um vilão e sem outros "excitante" e uma ação que decorre toda no seio de uma família que, afinal, se ama intensamente, conseguiria convencer o seu publico - sabemos que sim, nunca (re)leio esta peça de teatro sem que me comova. Rabos de lagartixa consegue isso mesmo, as personagens são reduzidas: David, um adolescente sonhador, a mãe, a ruiva, ou Rosa, cujos traços distintivo são os seus cabelos, insistentemente referidos, o inspetor Gálvan, talvez apaixonado por esta mãe abandonada, Paulino, o melhor amigo de David, o irmão de David, que é o narrador, mas que ainda não nasceu no tempo dos acontecimentos, há ainda o cão Faísca e, em minha opinião, o barranco, lugar emblemático para onde se escoam todos os afetos e todos os sonhos de David.

A ação não é digna deste epíteto, pois, tal como as personagens, parece estagnada, cercada, oprimida, entre margens de um barranco que cerca Barcelona do tempo de Franco. Nada parece acontecer, mas, tal como David pressente no leito seco do ribeiro o tumulto das águas passadas de enxurradas que cavaram as margens, da mesma forma, há um tumulto invisível que agita a vida interior destas personagens, desenraizadas, melancólicas, sofridas, resistentes e resilientes. Rosa é uma figura magnética em torno da qual todos gravitam: David, o inspetor, o filho que traz no ventre. Mas as personagens comportam-se como retas paralelas, condenadas a nunca se cruzarem, próximas, mas irremediavelmente separadas, inconciliáveis. Todas são, à sua maneira, enternecedoras, comovedoras, merecedoras do nosso respeito, ao mesmo tempo que nos horrizamos com a forma como a tragédia vai borbulhando à sua volta, alimentada pelo fogo lento da sua impossibilidade de saída: é isso, não há saída para elas, porque vivem ali e naquele tempo.

Estas figuras individuais, tão humanas como nós, condenadas a permanecer enredadas neste labirinto, assumem a boca de cena de uma tragédia maior, que se pressente como pano de fundo: os tempos duros de uma ditadura. Há referência à polícia, às torturas, às mortes mal explicadas, ao medo, à sanha contra os homossexuais, à hipocrisia de uma sociedade que funciona apenas para os simpatizantes para com o regime - Rosa era professora primária, mas foi impedida de exercer, como tantos outros, assim colocada à margem - à pobreza, a uma Barcelona cuja periferia é retrato de um abandono, de uma degradação que está a anos luz da Barcelona cosmpolita de que hoje ouvimos falar, tão distante que parece não poder ser a mesma. É um retrato cru, duro, descarnado que tem sobre o leitor um efeito profundamente catártico.

É um livro que fica em nós, dolente, terno, amargo, profundamente sensorial. Levo comigo para sempre David e a forma como o sonho o liberta do medo e do desgosto, a sua fantasia arriscada, a forma de exprimir a sua revolta, a tortura dos seus ouvidos doentes que nunca deixam que o silêncio se instale, a afeição desmedida que consegue votar aos desafetados da norma, o seu cão Faísca, velho, doente, quase cego, e o seu amigo Paulino, vítima da maior violência, física e psicológica, mas que cita poesia como forma de expressar o seu carinho pelos outros. Deixou-me com uma certa amargura a inexorabilidade do inspetor Gálvan, polícia dado à oferta de uma rosa branca. Tudo se passa de forma pouco explícita, mais insinuado do que contado, subterrâneo, mas impetuoso. Magistral este livro, magistral.

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