#7/2020 - Morrer na Primavera, Ralf Rothmann, por trás das fileiras do exército nazi
Editora: sextante
Género: romance de guerra/ memórias
Páginas: 236
Para guardar
"Isto é a guerra, é o trabalho mais duro que possas imaginar."
"Trazer um ser vivo ao mundo é o trabalho mais árduo que existe. Qualquer idiota é capaz de destruir e de matar".
Morrer na Primavera é o primeiro romance de Ralf Rothmann publicado em Portugal. É uma obra reconhecida, galardoada com o Prémio Kleist, o mais prestigiado prémio de língua Alemã e, apesar de a ação decorrer nos últimos meses da II Gerra Mundial, como refere a cronista do El País , é profundament humano e pacifista.
O mais interessante neste romance é situar-se atrás das fileiras do exército nazi, quando as chefias estão conscientes de que a Guerra está perdida e que o avanço das tropas aliadas é inevitável e incontrolável. Ainda assim, continuam a mobilizar todos quantos puderem combater, de qualquer idade, sujeitando-os a uma recruta breve e enviando-os para a frente, obedecendo ao lema "Minha honra chama-se lealdade". Nesses últimos dias do conflito, a deserção era punida com a morte e os soldados alemães viam-se assim encurralados entre a apertada vigilância da Polícia militar e o receio de serem feitos prisioneiros, em especial pelas forças russas. Esta é uma das linhas narrativas que fica claramente explícita na indicação do Führer: "um soldado na frente pode morrer, um desertor tem de morrer".
Atrás das linhas nazis há soldados jovens, muito jovens, mobilizados à força, desligados da propaganda nazi, aterrados com a ideia de morte, esperançados na possbilidade do regresso para assim retomarem as suas vidas interrompidas, voltarem para os braços das namoradas tão jovens quanto eles, até mesmo para os braços das mães. Dentre eles, o romance foca-se em Walter e Friedrich, dois amigos de dezassete anos, que trabalhavam juntos numa vacaria e que vivem juntos o horror desses meses. Partilham com todos os outros a expectativa que a guerra acabe antes de serem mortos.
O romance é focalizado em Walter, que se torma motorista da Unidade de Reabastecimento e que, mercê dessa função, tem bastante mobilidade e, através dos seu olhar ainda inocente vão desfilando os quadros apocalíticos, caóticos, de violência e provação que soldados e população vão vivendo. É a fome e toda a sorte de carências, são os bombardeamentos, as feridas, os piolhos, o sangue, os cadáveres, o cheiro, a indiferença, a perda da dignidade. Mas estão lá também o deboche, a desumanidade, a insanidade. No entanto, o discurso é contido, sem nunca ceder à facilidade do sensacionalismo, tratando este tema tão delicado com inteligência e sensibilidade, mas dando-nos um libelo contra a guerra, contra esta arbitrariedade de jovens serem arrastados para a morte devido aos desmandos de outros, mais fortes a quem interessa o jogo do poder. Assim, o expõe Friedrich, quando diz que nem sequer votou em Hitler, que não tem inimigos e que não percebe o que está a fazer naquele cenário dantesco.
A ação do livro é apresentada como um relato levado a cabo pelo filho de Walter, tornado escritor, que recupera as memórias de guerra dos seu pai. É narrado em analepse e esbate a fronteira entre a personagem e a pessoa, pois que fica implícito que os relatos se aproximam do documental.
O livro comoveu-me profundamente. Aconteceu-me com ele o que senti quando, em viagem pela Normandia, visitei os cemitérios militares e, em sobressalto (que vergonha), percebi que também havia cemitérios alemães. Também houve alemães que perderam a vida na guerra, vidas destruídas, arrastadas para um conflito desumano, cuja razão não chegavam a perceber. É esse o trunfo do livro, em minha opinião, lembrar-nos de que, do outro lado, também houve sofrimento, que os alemães também foram vítimas dos nazis, que o mal não escolhe lados, é acrítico e tanto tortura o inimigo, como aqueles que escolhe tratar como inimigos.
A propósito do livro, deixo aqui o maravilhoso poema de Fernando Pessoa: "O menino de sua mãe"
O MENINO DA SUA MÃE
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
— Duas, de lado a lado —,
Jaz morto, e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo, e bem!»
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.