#8/2020 - A arte de chorar em coro, Erling Jepser: para ler já!
Editora: Cavalo de Ferro
Páginas: 211
Género: romance picaresco/de aventuras... ou outra coisa qualquer.
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O livro todo, em bloco, só assim é que ele faz sentido.
Estou absolutamente desconcertada com este livro! Quase que me apetece dizer que não tenho estudos para isto. Atenção, eu adorei o livro. Não é qualquer um que consegue numa moldura quase lhana, simplista, abordar assuntos complexos; não é para todos falar de atos brutais, de crueldade sob um manto diáfano de inocência, humor e sensibilidade. Este romance é - não duvidem por um segundo - uma verdadeira obra-prima. Mas, mesmo assim, estou desconcertada e abalada.
Vamos por partes.
Parece que Erling Jepsen se estreou tardiamente no romance (nasceu em 1956 e só publicou o primeiro romance em 2002), mas, antes disso, escreveu muito, muito teatro e, de facto, foi escola que aproveitou sobejamente na composição deste A arte de chorar em público, precisamente o seu romance de estreia, que foi adaptado ao cinema e que chegou à cerimónia dos Óscares nomeado para melhor filme estrangeiro. Não se pode dizer que seja coisa pouca. (note to self: ir a correr procurar o filme para ver).
O romance, quanto a mim, é indefinível: será de formação? serão memórias? picaresco é seguramente e as aventuras não são bem assim... Talvez nem tudo possa ser definido, talvez o primeiro encanto do livro seja esse, escapar a um formato, essa é a primeira zona de conforto que temos de abandonar nesta experiência literária. Agora que a leitura é extraordinariamente abosorvente, isso é seguramente. A estranheza do género não deixa de nos agarrar, de nos puxar para aquele vórtice discursivo que nos enreda e nos deixa perplexos, embora divertidos. Ai, mas com que amargura. Portanto, pensem num bom prato agridoce, em que ao cozinheiro lhe escapou a mão ao juntar os ingredientes amargos.
A ação é crua, alguns momentos raiam a monstruosidade, desvendando os demónios que se escondem em muitos peitos aparentemente piedosos. Todavia, tudo o que aqui é terrível é suavizado pelo facto de ser narrado através de um filtro poderoso: os olhos de um rapaz de onze anos, cuja compreensão imperfeita das coisas nos poupa imenso à possível violência do relato. Por causa disso, o romance resulta num documento comovente, em especial porque essa estratégia narrativa permite ao autor não contar tudo, deixando muito por dizer, restando-nos adivinhar e completar a narrativa. A visão que nos é dada é inocente, marcada pelo amor desta criança à sua família, pela idolatração do seu pai, pela disposição para fazer tudo para os ver bem e felizes. A verdade é que este rapaz é um Cândido dinamarquês, tanto mais autêntico quanto a sua é a candura da infância. Esta circunstância explica a veia cómica, mordaz, divertida em que a história vem embulhada.
A minha teoria é que o facto de Jepsen ter sido, antes de romancista, dramaturgo explica em grande medida a forma como o autor soube construir o romance num tom coloquial, aproximando-se ao discurso de uma criança, mantendo a sua focalização. A fluidez e autenticidade desse discurso é um dos maiores trunfos do livro. É impossível não nos enternecermos, não amarmos este rapaz, não torcermos por ele.
Apetece-me suplicar a todo o leitor, a todo o verdadeiro amante de livros que não passe por cima desta obra. É incontornável. Leiam, vai doer, mas vale a pena.
Balancete: 2020 vai muito promissor em leituras, começo a recear não conseguir manter o nível até dezembro.