#8/2021 - Lincoln no Bardo, George Saunders: um híbrido literário
Editora. Relógio d'Água
Páginas: 359
Da série livros que tinha em casa, que comecei e não terminei.
Cheguei a este livro através de uma lista com os livros mais importantes da década passada e fiquei muito, muito curiosa. Claro que o comprei na primeira oportunidade, mas não lhe peguei logo, ficou a estagiar. Depois, ainda em 2020, comecei a lê-lo e até tinha avançado bastante. Mas, pelos mistérios da leitura tão inexplicáveis, pu-lo de parte, porque outras leituras se intrometeram pelo meio e deixei-o até a semana passada. Não o deixei de parte por não ter gostado, ou porque a leitura não me agradou, deixei porque é um livro exigente. Tenho consciência que não é um livro que possamos ler cansados, ou para desligar o cérebro. Nada disso. O livro convoca-nos inteiros, exige atenção e dedicação. E, de repente, como à espada do conde D. Henrique em Mensagem, achei-o em minhas mãos e a leitura fez-se. E que leitura!
Tudo nesto livro é surpreendente, inusitado, original, convincente e, apesar disso tudo, o relato mais humano, mais digno que me lembro de ter lido - até estar a ler um outro livro de Julian Barnes, mas isso fica para amanhã.
Começo pela arquitetura, pela estratégia narrativa e pela linguagem. A hibridez do livro resulta de uma amálgama de géneros: recursos do texto dramático, porque a narrativa é toda colocada no discurso direto das personagens, mas é romance, porque essas personagens, na verdade, levam a cabo uma narrativa que oscila entre a primeira e a terceira pessoas, ora narrando, ora sendo objeto da narrativa. A ação - nem sei se esta é uma categoria que se deque - oscila também entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, os segundos mais complexos que os primeiros, com angústias existenciais a que são dadas mais profundidade. A linguagem assume o pastiche como molde, oscilando entre a notícia jornalística, a carta, as memórias, o diário, o diálogo... e a concertação de tudo isto nunca fica aquém da mestria de quem sabem fazer malabarismos com mutos pins.
Quanto à história, ela resulta também da colagem de muitas histórias, individuais, que explicam a razão de os "enfermos" se recusarem a tomar consciência do seu destino, da lugar onde se encontram, do receio de abandonar este limbo onde podem permanecer e acalentar a esperança vã de um dia poderem regressar ao outro lado, ao lado de lá, para além do gradeamento. O seu tempo, como numa tradição de séculos cujos cânones consolidaram, é a noite, o tempo do nosso sono, os vivos. Evolam-se das suas formas de enfermo e caminham-deslizam por aqueles lugares de ninguém, uma paródia da aldeia global que, em muitos casos, lhe permite perpetuar o mesmo ostracismo e exclusão, as mesmas hierarquias, os mesmos vícios. Lembrou-me - daí que Gil Vicente seja, de facto, um autor visionário - as personagens dos autos de Gil Vicente, já nas barcas, já com o destino definido, mas ainda não consumado.
Há, depois, a história do filho do presidente Lincoln, Willie, tragicamente falecido aos 10 anos, o enfermo mais comovente, mas o mais clarividente e o mais corajoso, até no momento de se deixar ir e aceitar a separaçao do seu amado pai. Apesar destes elementos, não receiem esta leitura. É tudo tão elegante, tão fantástico, mas tão sóbrio ao mesmo tempo, tão pungente, tão humano, que a leitura nos aspira para dentro deste livro maravilhoso, devolvendo-nos esperança, fé na humanidade, apego às coisas simples da vida, aqueles prazeres que nos fazem vivos, porque os podemos experimentar. É, mais uma leitura catártica, que nos concilia connosco e com os outros, que nos devolve a nossa justa perspetiva e o nosso justo tamanho, que nos deixa enternecidos, fortalecidos, porque, se o estamos a ler, ainda não estamos na nossa caixa de enfermo, ainda não somos enfermos, ainda podemos e poder é estar vivo.
Leiam, vão ver que não dói mesmo.