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Livros para adiar o fim do mundo

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

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Livros para adiar o fim do mundo

05
Mar21

A literatura nos tempos de cólera - no que eu me vou meter.

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Li ontem, num post da Maria Rosário Pedreira, no seu blog Horas Extraordinárias - en passant, um blog também ele extraordinário - que a tradução da obra da poeta negra que declamou um poema na tomada de posse de Joe Biden - sou péssima para nomes - entregue a uma escritora, vencedora do Man booker prize - sou péssima para nomes - foi contestada e acabou abortada por decisão da escritora por (alerta perplexidade) a dita não ser negra (nem sei se este é o termo politicamente correto agora, mas eu não consigo dizer preto, sinto-me ofensiva), logo não estaria habilitada a compreender a obra que teria de traduzir. Fiquei toda arrepiada e, daí, que os nomes nem tenham grande importância, o destaque vai todo para esta ideia absolutamente trágica: a literatura passou a ter cor! E se a moda pega, não sei onde iremos parar. Começo a estar cansada do radicalmente politcamente correto.

Proponho um exercício. Para mim, a sanha do comunismo contra a religião, o ópio do povo, contra a confissão, a figura de Cristo, e outros adereços, é por demais irónica, quando no lugar de Cristo se pôs o Grande Lider, ou o Querido Líder, no lugar da confissão, se pôs a crítica e a autocrítica, ainda mais penosa, porque havia uma dimensão de humilhação pública, em lugar da missa se puseram as paradas militares, em lugar do evangelho se pôs a doutrina. Enfim, mudaram-se os nomes, mas a lógica era a mesma - disclaimer, gosto de colher das coisas aquilo que elas têm de bom e que pode fazer de mim uma pessoa melhor, e há coisas no comunismo que, nos princípios, me agradam, como a ideia de olharmos uns pelos outros; mas também há coisas no liberalismo de Adam Smith que acho muito acertadas. Voltemos à necessidade de uma obra literária de um autor negro ser traduzida por um negro: se começamos a achar que há coisas de negros e coisas de brancos, não estamos a ser muito originais, já houve quem pensasse assim e até fizesse disso uma forma de organização social, chamava-se apartheid, parece-me que era isso. O que me assusta é uma espécie de auto segregação em nome não sei de quê.

Agora levemos o exercío ao limite: se não sou judia e não estive num campo de concentração, não posso compreender o horror do nazismo e do extermínio concertado. Só os judeus que estiveram em campos de concentração é que podem, já há é poucos, que já passaram alguns anos, mas convém que alguém lá volte. Porquê? Para não nos esquecermos! Não posso ler literatura japonesa, porque não sou japonesa e, de facto, há uma enorme distância cultural que não é sobreponível. Não posso ler literatura africana, em especial a dos países de língua portuguesa, por causa do colonialismo e eu, sendo portuguesa, estou do lado do opressor - mesmo que não fosse nascida, mesmo que queira perceber, mesmo que queira conhecer, mesmo que entenda a literatura como uma forma de me aproximar do outro e de moldar a empatia.

Isto é tudo um disparate enorme, mas um disparate que começa a ser preocupante. Por um lado, andam os cheganos dos nossos dia a clamar a divisão à força da nossa sociedade, estratificando-a - também não é original, em tempos remotos chamou-se feudalismo; por outro, andam as minorias - ou outras coisas, ajudem-me que me faltam as palavras - a defender um orgulhosamente só, que me faz lembrar as feministas mais encarniçadas, que acham que devemos matar o homem, em tempos quisemos matar o pai, uma redoma onde se vão encerrar, não já humilhados e ofendidos, mas orgulhosos e sobranceiros.

Digo eu, humildemente, que a arte não tem cor, nem género, nem cheiro, nem sabor, nem religião. Está, na sua forma mais perfeita, ao serviço do Belo, do Bem, do Ético. Quanto mais mestiça - é de propósito - melhor, quanto mais plural, melhor, quanto mais impura melhor, quanto mais olhares se cruzarem, melhor. Está, parece-me, na hora dos sensatos começarem também a falar, porque, se só os idiotas continuarem a agitar-se na ágora, ainda acham que estão certos. Basta! Pim Pam Pum! Os idiotas são idiotas, abaixo os idiotas!!!

Ou então, leiam os versos de Pessoa: "O poeta é um fingidor/finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente/E os que leem o que escreve/na dor lida sentem bem/não as duas que ele teve/mas só as que eles não têm". Está tudo dito.

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