A terceira mãe, Julieta Monginha: uma história tem tantas versões quantas as pessoas que a viveram
Feliz 2020! É o voto que se impõe nestes dias. Não resisto à metáfora dos livros: temos 365 páginas em branco à nossa frente, vamos tratar de escrever uma boa história... se não tivermos jeito para a escrever, podemos sempre procurar boas histórias para ler.
O primeiro livro que concluí em 2020 foi este A terceira mãe, de Julieta Monginho. É um romance, editado pela Porto Editora, com 231 páginas e que mereceu à sua autora o Grande Prémio do Romance e Novela APE 2008.
Como leitora, sou muito vadia, ou posso dizer eclética que dá logo outro ar. Daí que esquemas rígidos de leitura não se adequem ao meu perfil. Não prometo ler só autores portugueses, não prometo ler 50% livros escritos por mulheres e 50% livros escritos por homens. Não me recuso a ler um livro ainda que o seu autor não pense, enquanto sujeito civil, exatamente como eu. Não leio a obra completa de um autor. Não leio um autor só porque a crítica diz que sim. Leio quase sempre o que me apetece e, quando abandono um livro - é raro, mas acontece - é porque, tendo persistido, não houve química entre nós.
Este romance comprei-o no ano passado na Feira do Livro. Uma colega tinha-me falado da autora com entusiasmo, não conhecia. Li a sinopse e pareceu-me interessante. Peguei nele no início de dezembro, mas já lidas cerca de vinte páginas, comprei o fabuloso O Papagaio de Flaubert, e A terceira mãe teve de esperar.
Trata-se de um romance de família, que começa com a mãe Rosalina que, nascida numa família numerosa, é dada a criar a uns tios mais abastados e que passa a ser uma visita na casa dos pais. Educada com esmero, com privilégios como formação musical, Rosalina é ainda dada à pintura, pintando pássaros em fitas. São também personagens da intriga a filha Filomena e a neta Joana. Há ainda uma outra neta, mas cujo perfil ficional é só brevemente traçado. O romance é também uma revisitação do século XX português, já que os acontecimentos marcantes da nossa história surgem em breves pinceladas como pano de fundo. Mas nunca é apenas a ação que distingue uma obra. A história até pode ser muito boa, mas se não se souber como contá-la a sua força esmorece e ficamos com exemplos como As cinquenta sombras de Grey ou as novelas da TVI - isto é, sempre a mesma história e ainda por cima contada da mesma maneira. No caso das novelas da TVI, é sempre aos gritos.
Julieta Monginho conta a história que há a contar pela voz das suas personagens, múltiplas personagens, múltiplos pontos de vista, múltiplas versões. Daí resulta uma visão caleidoscópica que, longe de mergulhar o relato em contradições, o aprofunda, o explica, o clarifica. Cada voz que se faz ouvir complementa a versão do outro. É, por isso, um livro que obriga o leitor a fazer algum "exercício", afinal é-lhe atribuído um papel: é necessário montar a história, encaixá-la, estabelecer nexos, ir buscar lá atrás os dados que faltam à parte que se está ler. É um romance como um móvel do IKEA, vem em fragmentos que é preciso ligar, um puzzle que se vai montando. É polifónico, como é a própria vida, porque uma existência não se perspetiva isoladamente, é resultado de todas as operações matemáticas que conhecemos.
Outro aspeto relevante neste livro é o resgate de uma certa forma de vida que os nascidos no século xx decerto bem conhecem. A condiçãofeminina, a pobreza, o analfabetismo estrutural, a sociedade patriarcal, a violência contra as mulheres, a emergência do fenómeno Fátima, a religiosidade, os milagres, as vozes, a crença e a crendice, as lutas sociais, a luta pelos direitos do trabalho, a ditadura e o 25 de abril, os disruptores, a poesia... Atenção, nada disto vem empacotado e se torna maçador, são subtilezas, estão lá, são reminiscências e referências, mas não a razão, o princípio. As coisas estão em relação com, mas é a dimensão humana da história que se vem contar: a procura do lugar de ser, a procura de si mesmo,a procura da felicidade, afinal é isso que todos nós queremos.
Pessoalmente, gosto muito deste tipo de livros e fico sempre rendida a quem, ao escrever, o faz desta maneira, recusando facilitismos, dando voz às figuras e fazendo da história um momento em que acompanhamos o fluxo da consciência das suas personagens. Há sobretudo a primeira pessoa e raramente a terceira. Também apreciei a familiaridade, o tempo retratado tem muito a ver com a minha infância: um colega meu de escola, de uma família numerosa, foi também criado pelos tios, que não tinham filhos; o terço era uma prática quotidiana; as referências sociais fazem parte das minhas memórias; a forma como a cosmovisão portuguesa foi evoluindo está lá registada; a sugestão da corrupção política e económica está lá igualmente; a emancipação feminina também. Ler este livro foi reviver um tempo que, parecendo longínquo, é na verdade relativamente recente.