Ensino a Distância - Lado A/Lado B/Lado C...
Assim, à laia de disclaimer, tenho a dizer que não gosto muito de escrever sobre os assuntos que são cavalgados no momento. Foi assim com o a manutenção das escolas abertas, com o fecho das escolas, com a transição para o ensino a distância. Mas houve uma coisa, uma pequenina coisa que hoje me obrigou a escrever este texto, bem, na verdade foram pequenas coisas. Acredito que nos instantâneos dos dias é que define uma época. Estou também consciente que a educação (escolas, professores, pais, alunos) é como um terreno minado, mesmo que levemos o burro às costas, acabaremos sempre por ser consumidos numa explosão. É um risco... no que eu me vou meter.
Lado A -
Alunos pontuais - alguns às 08:27 já estão na sala de espera; empenhados - com material, a trabalhar, a participar; câmara ligada; sorrisos ainda um pouco hesitantes; dóceis, no sentido em que acatam as minhas sugestões de trabalho com uma serenidade que me encoraja. Reconfortada por saber que tanto está a ser feito para dar a estes alunos, pelo segundo ano consecutivo, uma referência, a manutenção da ligação à escola, a persecução de objetivos pedagógicos. Palavras novas que inauguraram este tempo novo: ZOOM, teletrabalho, Classroom, webcam, salas simultâneas, bate-papo. Vários testemunhos de que as coisas vão bem, de que não há desleixo, há bom senso. Observo uma determinação muito maior, a de quem já sabe ao que vai e se armou do necessário. Professores muito preocupados com os "seus alunos". Antecipação de todas as estratégias para que a escola continue a cumprir, a proteger, a incluir. Empréstimo de material aos alunos mais carenciados, tentativa de remendar o que ficou a descoberto, o fornecimento de refeições, a atenção aos alunos que, não estando protegidos pelo ASE por tudo e mais alguma coisa, são sinalizados e, em conjunto com as autarquias, são-lhes asseguradas as refeições... e cito " Muito obrigada pelo seu investimento neste âmbito. A solidariedade é das coisas mais belas que uma escola pode ensinar."
E sinto, como sempre, que tenho a profissão mais bonita do mundo, que faço parte, que estou a mover o meu grão de areia que reconfigura a duna.
Lado B -
A discussão à volta da disponibilização dos meios e dos equipamentos dos professores - em última análise, sei que me devem ser dados os meios para trabalhar, que é um direito, mas poderá o meu país agora contar armas? Não viveremos efetivamente uma situação de catástrofe para cuja resolução todos devemos contribuir? Este tipo de reivindicação - agora - não é demasiado demagógico? Os alunos que se afastam, que não querem, que desrespeitam, que boicotam. A desvalorização da escola e do seu investimento para o futuro. Alunos que tiram o sono aos seus professores. A dimensão esmagadora do número de alunos que não conseguem aceder ao ensino a distância e a consciência ainda mais esmagadora de que não vai ser possível encontrar resposta para todos, a procura de alternativas para que se mantenham ligados às escolas. Aqueles que o sistema não integrou, porque faltou um papel e não têm escalão, mas as dificuldades não se compadecem. O diagnóstico a sangue frio de um país ainda tão assimétrico: os dois pais estão desempregados, são três filhos, só têm um PC e um telemóvel; não tem internet, vai assistir às aulas a casa de um vizinho, quando a outra criança não tem aulas; não tem aparecido, crê-se que está a trabalhar nas obras; só tem um telemóvel, que está partido, mal consegue ler as mensagens; mãe pede escola de acolhimento, porque é mãe solteira e não pode perder trinta por cento do rendimento... não vale a pena continuar esta enumeração, seria demasiado longa e ainda ssim demasiado afastada da realidade. O défice de civismo e de literacia, as pessoas do país dos direitos: quero um computador para o meu filho, o vazar de ódio nas redes sociais, a incompreensão da falta de meios com que as escolas se debatem, a desvalorização da escola e da educação dos filhos a menos que ela seja integralmente garantida pelo Estado, e cito "tenho um smartphone, mas não é para os meus filhos assistirem às aulas"; "se não me arranjam uma câmara não sei para que quero o computador, assim mais vale vir trazê-lo".
E sinto que tenho a profissão mais bonita do mundo, porque só formando havemos de amadurecer a nossa cidadania.
Lado C
Uma aluna de ensino secundário, imigrante, responsável por dois irmãos mais novos, o pai é motorista, a mãe ficou retida no país de origem por causa dos COVIDS, sem escalão, porque os papéis ainda não estão regularizados, apoiada com as refeições e a debater-se para aprender, para ser, para se manter a flutuar neste mundo voraz que a submerge e cito a mensagem enviada à diretora de turma: "Bom dia stora , eu queria avisar que não vou comparecer às aulas de hoje e amanhã , pois o meu irmão ficou esses três dias sem E@D por não ter aparelho, então disponibilizei o meu para ele esses dois últimos dias da semana para ele não ficar tão atrasado , não se preocupe eu não ficarei atrasada nas matérias, irei pedir aos meus colegas para me passarem o que for passado nas aulas . Espero que compreendas ^^ beijinhos tenha um bom dia !"
E sinto que tenho a profissão mais bonita do mundo, mas que isso não me impede de sentir esta mensagem como um murro fortísismo no estômago, nem me ajuda a conter as lágrimas cada vez que a releio, à qual voltei repetidas vezes ao longo deste dia e me fez pequena de impotência.