Eva Expusa do Paraíso #1 - Natália
A porta do quarto abriu-se, uma mulher saiu, corada e apressada, não olhou aqueles que esperavam na sala, que ocupava todo o centro da casa. Ouviam-se gemidos, umas vezes abafados, outras estridentes, quase gritos. No quarto, onde pontificavam as mulheres, Natália, dava à luz a sua sétima filha. Era um dia de mulheres. A D. Maria tinha sido chamada assim que rebentaram as águas, cuidaria das meninas enquanto durasse o rito, que as mais velhas já iam conhecendo. O homem da casa tinha sido expulso com condescendência, sorrisos e pancadinhas nas costas: vá lá à sua vida, que já sabe que isto demora. A Natália é sempre assim. Nunca é fácil. Vá lá, depois mandamos chamar. Desta vez é que é o rapaz, vai ver, vem aí o morgado, o herdeiro. A D. Alice, parteira certificada por todas as mulheres das redondezas e que tinha visto nascer metade das pessoas que se conheciam, veio um bocadinho mais tarde. Também ela sabia que o parto de Natália havia de custar, aquelas ancas estreitas, os bebés sempre grandes, já por duas vezes o cordão umbilical à volta do pescoço. Até que as dores se tornassem menos espaçadas, nada podia fazer, a não ser manter uma conversa sobre as pequenas coisas de que se faziam a vida daquelas mulheres, que viviam há séculos nesta espécie de gineceu que todas iam partilhando. Um mundo feminino do tamanho do próprio mundo. Antes da parteira, ainda viriam as irmãs de Natália preparar a refeição do fim do dia. Os seus homens chegariam mais tarde para tomarem essa refeição. Era assim que se passava o dia de um nascimento. Era um pretexto, como tantos outros que o calendário ia oferecendo, para que se juntassem e para que as ocasiões se transfigurassem em rituais festivos que eram vividos com um certo alheamento, mas dos quais a ninguém ocorreria não participar. Desta forma se iam tecendo as malhas da família que seriam quase impossíveis de desfazer. Iam-se apertando, estreitando, até ninguém poder desatar aqueles nós.
Natália jaz na cama. Está apoiada nos braços, a cabeça deitada para trás, o corpo tenso, percorrido por uma dor que cada vez se torna mais forte. Geme com os dentes rilhados, o som sai rouco, profundo, arrancado bem lá do fundo da garganta. É um som que parece um urro. A barriga eleva-se como um bombo. Os lençóis foram branqueados à custa de barrelas obstinadas, corados ao sol, sobre as pedras. É uma brancura que quase fere a vista se ali houvesse alguém capaz de reparar nisso, ou capaz de formular este pensamento assim tão literário. As mulheres que rodeiam Natália estão orgulhosas dela e do lençol imaculado, mesmo assim vão vistoriando pelo canto do olho, não vá haver ali alguma mancha que as desonre a todas. Não há mesmo. Podem dedicar-se a Natália. Natália que encara a parteira fixamente, os olhos abrem-se e arredondam-se. Não são precisas palavras, todas sabem o que está a acontecer e o que é preciso fazer. A parteira senta-se no banco baixo que está ao fundo da cama, empurra os joelhos de Natália para trás, ajuda-a assim a fazer força no sítio certo. Vê-se já a cabeça da criança, tem um cabelo muito preto e muito farto que se funde nos pêlos púbicos da mãe. Está mesmo na hora. É a última contração. Força Natália, a força toda que puderes, este bebé tem de nascer agora, tu já sabes como é, faz força, força! A irmã mais velha de Natália percebe que está a custar. Dobra-se sobre ela e carrega-lhe no ventre para fazer a criança descer. Há vozes que se enrodilham umas nas outras enquanto encorajam a mulher que dá à luz. O vinco na testa da parteira é suficiente para todas, mesmo Natália, perceberem que é o momento mais delicado. O bebé tem de nascer, é a hora mais perigosa do parto, quando a criança atravessa o canal do nascimento e não pode estar muito tempo sem sorver o ar que o espera cá fora. O urro de Natália cresce, cresce, não se sabe se depois deste parto ela manterá as cordas vocais que parecem a pontos de se rasgar. Tudo está tenso naquele quarto, o ventre de Natália vai-se rasgando, o seu corpo avizinha-se perigosamente da morte para que aconteça mais uma vida. Já saiu a cabeça, agora são as exclamações de alegria, o rostinho pequenino já se avista. A parteira roda conhecedoramente a cabecinha para facilitar a saída do resto do corpo. Todas esperam a nova contração, a expulsão acontece e uma nova vida entrou na vida, mais um elo na cadeia.
As mulheres voltam a afadigar-se. A parteira corta o cordão umbilical. A irmã mais velha pega na criança e diz em voz alta, é uma menina. O choro do bebé sobe no ar e não podia ser mais veemente. Ouve-se a água a ser deitada numa pequena bacia, mãos experientes vão-na temperando. A menina é lavada rapidamente, depois é embrulhada numa toalha que já tinha sido aquecida. O pequeno ventre é envolvido numa faixa de tecido também branca, também aquecida, a faixa é depois cuidadosamente ajeitada. Colocam-se as fraldas. Uma camisinha branca, umas peúgas feitas por Natália, um cueiro de xadrez, uma touquinha e um xaile de lã. A menina tem os olhos muito abertos, são duas contas negras na pele rosada do rosto muito redondo. Uma mulher diz, é tão bonita, outra exclama, olha o narizinho dela tão perfeito. Voltam-se para a mãe e tranquilizam-na, é perfeitinha.
Enquanto umas cuidavam da criança, outras cuidavam da mãe. A parteira esperou pela expulsão da placenta. Depois fez uma ligadura com panos brancos e procurou estancar o sangue. A irmã de Natália ia-a limpando com uma toalha humedecida. Ajudaram-na a virar na cama e substituíram os lençóis, trouxeram-lhe uma camisa lavada, já quente. Recostaram-na na cama e estenderam-lhe a menina que ia gesticulando no casulo de lã, os olhos sempre abertos. Natália abriu a camisa, puxou o seio túmido e aproximou a bebé que o sugou como quem não espera outra coisa. Com um reflexo aprendido há milénios, ficou a mamar, ainda um pouco desajeitada, fazendo um barulho que era um allegro naquele quarto.
As mulheres foram arrumando o quarto, restituindo-lhe a ordem, enquanto Natália e a bebé celebravam o mistério mais antigo de todos, atando os primeiros fios dos laços que unem mãe e filha para sempre. A cabeça da mãe inclinava-se gentilmente para a filha, a mão livre tocava-lhe a face, ia-lhe beijando a testa franzida e sorvia o cheiro doce que reconhecia em cada uma das filhas. O seu homem entrou, já sabia que era uma menina. Deu de ombros e disse, não se lhe pode chamar Manuel. Ela respondeu-lhe, séria, fica Margarida, a minha última flor. Tenho quarenta anos, não quero mais filhos. Ele assentiu e sentou-se na beira da cama, olhou a menina e disse, é bonita. Pois é, disse a mãe.
Lá fora, as mulheres e os homens preparavam-se para fazerem a refeição da noite. O dia ia escurecendo. A vela sobre a cómoda dourava o quarto de luz. Natália estendeu a menina ao seu lado que já dormia serenamente. Ficou a olhá-la e acabou por cair num sono leve. Caiu a noite.