Grande Sertão Veredas, João Guimarães Rosa, a obra maior de um gigante da literatura
(Re)surgiu nos escaparates das livrarias o romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa e não resisti a fazer um post sobre esta magnífica obra da língua portuguesa, que merece ser revisitada por quem a conhece e ser conhecida por quem nunca a visitou. É o livro maior de João Guimarães Rosa, esse gigante da literatura brasileira, que é um bocadinho o Tolkien da lusofonia, não tanto por enveredar pelo fantástico, mas mais pela originalidade da escrita e pela criatividade inesgotável. O romance é denso, é rico, é enigmático, é extenso, é desafiante... por esse motivo vou dividir este post em fragmentos para não me perder e não vos levar a aborrecerem-se com um texto demasiado longo. Afinal, na era das redes sociais, há que cultivar o imediato se queremos merecer a atenção.
1. É verdade, não vos vou mentir, não é um livro para qualquer um! Se a sua resolução de Ano Novo for começar a ler, guarde este conteúdo para 2021. Tem de ir aos treinos primeiro, precisa mesmo, diria eu de fazer uma recruta, um programa, de contratar um personal trainer da leitura, nos tempos modernos, aposto que existe, se não existir, ofereço os meus préstimos. Grande Sertão: Veredas é extenso e as primeiras cem páginas estão lá como casting, como prova de seleção, se as superar vai ler o livro, se lhe parecer difícil, não desista e persista. Eu tentei três vezes, só à terceira é que a leitura arrancou, mas que leitura!
2. Não tenho um livro da minha vida, nem vários, tenho uma estante. Grande Sertão: Veredas ocupa o centro da prateleira do meio. É uma leitura que consigo rememorar quase sensivelmente, leia-se pelos sentidos. Ainda me ardem a garganta e os olhos por causa da seca do sertão. Ainda não chorei totalmente por causa da história de amor que o atravessa. Ainda não superei a memória de Fausto que pontua as páginas. Ainda não encontrei nem na literatura nem na vida personagem tão enigmática e profunda e sedutora como Diadorim, que o protagonista venera, com um incómodo como o de Alberto Caeiro, como quem tem um pé dormente. Ainda não fiz o luto por aquelas personagens errantes do cangaço. A obra tem merecido bibliotecas de estudos que a procuram decifrar, interpretar, explicar. É a mãe de todas as obras, é o anel dos críticos literários, é o Graal de todos os leitores, para o possuir é preciso sofrer provações, mas o final é redentor.
3. Grande sertão: Veredas conduz-nos como numa demanda, o leitor veste a armadura do cavaleiro e erra pelo sertão brasileiro, mergulhando nas suas questões sociais, políticas, económicas, de mentalidade. Percebemos a razão de ser dos chefes capangas, dos bandos, do banditismo, tudo se explica pelo cadinho que é o Brasil e em especial o sertão. Mas estão lá, plasmadas na secura da vastdão do sertão, grandes questões da condição humana: a vida e a morte, a culpa e o pecado, o amor e o ódio, a paz e a guerra, a beleza e o sublime. Os cangaceiros de Guimarães Rosa são grandes como qualquer cavaleiro andante, são trágicos como Quixote, são homens como nós, estão divididos, encontram-se só para se voltarem a perder, questionam a razão de ser do destino como qualquer filósofo grego, são platónicos e aristotélicos a um só tempo, são, acima de tudo, um produto cultural que é a soma da realidade brasileira com a cultura inesgotável deste autor. Vale a pena ler este livro. É uma experiência que nos recria e que recria a nossa relação com a cultura. Se ao chegarmos a este livro tivermos a alma pequena, depois de o lermos, será impossível que ela volta à dimensão original.
4. No fim de tudo é o amor, a tragédia do amor que esteve sempre próximos e estavamos cegos e não o vimos e era tão óbvio.
5. Último conselho: à exceção deste post, que mais não é do que um incentivo, uma provocação - quem serei eu para dizer que este livro não é para si, caro leitor? - não leia mais nada sobre Grande Sertão: Veredas, comece a leitura como se fosse cego e aprendesse a ver, acompanhe a narrativa de Riobaldo com a suas hesitações e derivas, comece a perceber pouca a pouco sobre o que é o livro, decifre o enigma, e, no final surprenda-se, porque estava enganado. Fico à espera que venha aqui, ou descompor-me, porque um livro destes não se recomenda, ou agradecer-me, porque se eu não falasse nele, podia nunca o descobrir. Vista a armadura e percorra o sertão, veredas não lhe hão de faltar!