20
Jan14
O Chá
livrosparaadiarofimdomundo
Ochá
Anoite ia já alta, deitado sobre a cama repassava a vida a limpo, ia e vinha, iae vinha, desembocando sempre naquela mesma noite. Deitado sobre a cama, sentiao corpo abandonado à inércia, sentia a falta de vontade, os membros pesados,pesados, os olhos abertos, fixos no teto, mas sem o ver, o olhar, como tudonele, voltado para dentro, vendo-se a ir e a vir, a viajar no tempo, o seutempo.
Sozinhohá um par de horas, nenhum deles tinha voltado, saber-se sozinho não importava,mas facilitava o que queria fazer. Com os outros em casa não deixaria de serpossível, mas estando só era tudo mais fácil. Daqui a quinze minutos. Definirum objetivo era importante, daí que tenha pensado em ir daqui a quinze minutos.Enquanto esses escorressem, deixaria um pouco mais o corpo imóvel, sem sevoltar, sem se mexer, sabia-lhe bem, sabia que aqueles quinze minutos passariammuito depressa, por isso procurou abstrair-se de novo e de novo repassar a vidaa limpo. Os olhos fechados, a imagem dela veio e foi fácil que viesse. Nelapermanecia tudo aquilo de que gostava, mas era para as mãos que os olhosdesciam e a macieza da pele tornou-se viva e palpável. Eram um pouquinho, muitopouco papudas e macias, macias, a pele muito fina deixava sentir a carne apalpitar e ele deixava-se ficar a afagá-las irresistivelmente, abandonando-seàs sensações que se espalhavam pela sua própria pele em círculos.
Quasesem transição sabia que chegava a raiva e que aquela sensação quente nuncaseria bastante para a arrefecer. Os olhos fecharam-se com mais força, a cabeçacaiu para o lado, queria afastar-se, queria sair dali, mas já não podia, jáestava no círculo onde a raiva era um animal desenfreado, que debandava peloseu sangue, acelerando-lho e fazendo-o respirar com ruído. A palavra formou-senuma pasta de saliva, mas ele não a deixou sair, não a soprou e fechou oslábios com força. Não fosse ela escapar-lhe. Ainda não, ainda não, não podiafazer nada antes do tempo. Agora desperto preparou-se para assistir à repetiçãode tudo. Desde a primeira hora sabia que não era homem que chegasse para ela,nela havia a força de toneladas de água em queda livre, por isso era vital quese mexesse e fazia-o sempre, mesmo quando parada, falava, ria, mexia as mãos, ocabelo sacudido, a madeixa que enrolava nos dedos enquanto falava, o sorrisoaberto e falava, falava sempre muito, completando qualquer espaço que estivessevazio, como se receasse coisas por preencher.
Afigura dela, sem ser bonita, prendia a atenção e foi assim com ele, e com todosos outros que esvoaçavam à volta dela. Por qualquer estranha conjugação astral,ela gostara dele, contra toda a lógica de duas pessoas que pareciam tãoafastadas como as duas margens de um rio. Preencheram todos os requisitos que acorte enamorada pressupõe, picaram os clichés, e parecia amor. Como quem sedeixa ir, casaram, como quem se deixa ir, procriaram, como quem se deixa ir,caíram no marasmo dos casais que permanecem unidos pelo hábito e o medo derotinas diferentes. Esta era uma dos rostos, uma das versões desta história.