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Jan14
O Chá (II)
livrosparaadiarofimdomundo
Inevitavelmente,tudo tem o avesso, do lado dela a história era diferente, tinha uma pequenanuance, que não teria importância de maior não fossem duas pequeninascircunstâncias: conhecê-las e perceber que o incomodavam, como a roupa que nãoassenta bem no corpo, como um membro dormente. Não, não, estava a dizer mal,conseguia ser mais preciso, mesmo que, ao sê-lo, não pudesse mais mascarar averdade: aquilo picava-o como um espinho grosso cravado entre a unha e a carne.Ela tinha outro homem. Correção: nunca tinha sido homem para ela, porque um sónão chegava. Outra correção, porque era o dia da verdade: ela tinha outroshomens.
Nãoia agora fazer o mea culpa, haviaculpa? Deteve-se na palavra culpa. A raiva injetada nas veias mostrou-lhe que aculpa não era dele, questão resolvida. A culpa era dela. Havia a crónicafeminina, o manual de qualquer mulher com listas de verificação dos erros queos machos embrutecidos sempre cometeram, desde os séculos dos séculos, contraas finas flores da feminilidade, recusando-se ao culto de Afrodite. Asafrodites quando não cultuadas procuram outros sacerdotes, basta folhear ascrónicas e verificar a validade desta teoria. Homem que não oficia é ornado comchifres. A palavra voltou a encher-lhe a boca como um vómito, ainda a segurou,era cedo.
Odia de hoje tinha sido de festa, havia festa fora e dentro dela. A festa era umbom pretexto para as suas escapadelas. Palavra bem escolhida, não é amor, nãoera amor que a movia, era o sexo, sexo, sexo, e por causa dele se esgueirava.Ficou outra vez parado na palavra e ela encheu-se de significado, corpos emchoque, rostos retorcidos, bocas abertas, mamas e cus. Era ela. Ninfomaníaca?As palavras eram curiosas. Qual seria a mais indicada, ninfomaníaca? Haveriaoutra? Havia a outra, chula, mas ainda era cedo. Ela tinha ficado na festa,quando lhe disse que vinha embora, porque cansado, fora a razão que lhe dera,porque era um chato, a razão que ela tinha compreendido, porque precisava de sepreparar, a razão porque tinha vindo. Hoje era dia de festa e era o dia da suavingança, uma festa também, com pratos frios, mas igualmente notáveis. Seriahoje, para isso se tinha vindo a preparar. Abriu os olhos, procurou os númerosluminosos do relógio, tinham passado mais do que quinze minutos, ele sabia queo tempo ia sempre à frente.
Maisum bocadinho, mais cinco minutos, ainda há tempo. Começou a varrer a suavontade, juntou-a num montinho, pós espalhados nos vãos das portas, nadas,fiapos cinzentos, cotão, mas juntos faziam um bolo, que comeu de um trago. Deuum impulso, ergueu-se de repente, puxou as pernas para o lado, sentou-se epousou os pés no chão, sorveu o ar e fincou os cotovelos nos joelhos, pôs acabeça sobre as mãos. Deu-se conta das costas curvadas, sentiu os músculosencolhidos e a tensão nos ombros. Correção: esticou as costas, endireitou-as,abriu os braços, deixou-os cair ao lado do corpo, as mãos tocaram o tecido, eramacio como uma carne que lateja, macio, macio, macio, deixou-se ficar a afagá-lo.Respirou fundo, mais fundo, expeliu o ar, ouviu o som da sua expiração esentiu-se como uma arma engatilhada. Levantou-se, uma ligeira tonturatoldou-lhe o olhar, uma sombra escura passou. Pressionou os olhos, abriu-os epestanejou várias vezes, viu as sombras do quarto, viu o retângulo da janelailuminada com a luz amarela da rua, viu as sombras das árvores da praçadesenhadas nas paredes, agitando-se. Lá fora era uma noite de verão, morna, paraa qual era bom sair. Gostou do quarto assim na penumbra, não acender a luz, aluz é muito crua, podia enfraquecer-lhe a coragem para a vingança. Já não eracedo, era agora.