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Jan14
O Chá (III)
livrosparaadiarofimdomundo
Lembrou-se do hábito, um deles, em que a vida delestinha desembocado. Todos dias à noite partilhavam um chá. Sempre preparado porele. Punha a chaleira ao lume, esperava de pé encostado à bancada, a luz brancada cozinha criava um ambiente imputrescível, liso, direito. A casa àquela horarespirava como um corpo entregue ao repouso. O chiado da chaleira despertava-o.Com gestos lentos e distraídos tirava as chávenas do armário. Escolhia aschávenas. Ela gostava da azul, ele preferia aquela com figuras geométricasverdes. Em cada uma delas colocava um saquinho, Lúcia-lima, a ressonânciafeminina do chá da noite. Deitava a água, prendendo o fio nas asas das chávenaspara que o saquinho não fosse com a água. Dispunha as chávenas no tabuleiro, àsvezes juntava um pratinho de bolachas e o doce de que ela gostava. Elacensurava-o, mas debicava sempre as bolachas. Era daquelas da preservação dabeleza a todo o custo. Surpreendido viu a chávena à sua frente e ouviu o chiadoda chaleira. Fizera-o mecanicamente e a chávena fumegava à sua frente,perfumando o ar com o cheiro verde da Lúcia-lima. Foi buscar o tabuleiro,arranjado como sempre, voltou ao quarto.
Otabuleiro em cima da mesa do lado dela. No bolso das calças sentiu o roçagar dopacotinho de plástico com um pozinho branco, o pó inominável, o projetoinominável. Dia das coisas sem nome. Tirou o embrulho do bolso, mexeu-lhe, fezdeslizar a pequena quantidade de pó de um lado para o outro, virou para cima, opó desceu, inverteu o movimento e o pó voltou a descer. Era outra vez ainércia, a consciência da inevitabilidade. Desencadeou-se, era inexorável,distraído, mastigou mais esta palavra. Gostava de palavras, detinha-se nelas.Às vezes, quando ela perdia a paciência com ele, achando que se tinhadistraído, achando que estava lento, estava a mastigar palavras, a pensarnelas. O pó espalhava-se por todo o pacote, é branco, parece plástico, qualquercoisa artificial de tão branco. Fino, leve, parecia inofensivo. Veneno, venenopara ela. Era inevitável. A humilhação vinha a crescer cada vez mais e o venenoestava ali entre os dedos, prometendo-lhe essa desforra de todos os embustes,as mentiras, as humilhações, a altivez com que ela se habituara a olhar paraele. Aquele olhar de sarcasmo, de ironia que ela lançava sobre ele, cada vezmais declarado. Chega, chega. Veneno, seria veneno.
Láatrás, do outro lado dos seus sentidos, algo falava da inexorabilidade, dodepois. Mas aquela vozinha não importava. Tinha-se desencadeado, não haviavolta, era o impasse, a beco sem saída. Ela tinha de morrer e seria naquelanoite, depois de resfolegar algures, depois de se ter entregue uma vez mais aoutro. Ele não chegava para ela, ninguém chegava, nada chegava. De repentesubiu uma pressa, uma urgência de acabar depressa, de ver o quanto antes o queestava depois, o que seria o outro lado. Rasgou o topo do pacote, foi um bocadobrusco, sujou os dedos. A tentação foi grande: encostou a ponta da língua aodedo, procurou o gosto daquele pó, mas não sentiu quase nada, quase imaginou umsabor metálico, mais imaginado que efetivo, o pó não tinha sabor, era precisoque não tivesse sabor. Ergueu o pacote, pegou-lhe como numa calha e deixou-oescorrer para as chávenas. A euforia surpreendeu-o. Estava mesmo a fazê-lo.Podia voltar atrás, podia derrubar a chávena, evitá-lo ainda. Não. Não. Euquero!