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Livros para adiar o fim do mundo

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

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Livros para adiar o fim do mundo

26
Jan14

O Chá (V)

livrosparaadiarofimdomundo
Um cheiro agridoce chegou-lhe às narinas. O perfumedela, verde, floral, já esbatido, flor murcha ao fim do dia, e mais qualquercoisa, um pouco de suor, um pouco de fumo, e um outro cheiro que ele nãoconhecia do seu catálogo de impressões. Devia ser o cheiro do outro, quandodois corpos de friccionam, embatem, se amassam, se estreitam, colam o cheiro deum ao outro. Ela trazia o cheiro de outro e um animal ferido de morte agitou-senele, ergueu-se nas patas traseiras e urrou de dor. Não tolerava o cheiro deoutro macho nos seus domínios, por isso agitou-se, lutou para expulsar aquelasensação que o ofendia, que fazia borbulhar os seus brios de macho territorial.Um intruso penetrara e tinha que ser expulso. À letra, um intruso penetrara-a.A história seria diferente, não haveria abelhas-mestras, não haveria zangãosacrificado. Seria o macho dominante a comandar. Expulsaria o intruso e afaltosa, seria senhor nos seus domínios e reinaria ufano, outras fêmeasencontraria. Mas já o picava de novo a dúvida, teria ela tomado o chá? Nãoconseguia lembrar-se e já a dúvida o corroía mais do que o sangue insultado.
            Sentia-adeitada ao seu lado, a respirar brandamente, a mexer-se cuidadosamente para nãoo acordar. Virou-se de barriga para cima e deitou os braços por cima da cabeça eassim esteve por longos minutos. Depois virou-se para o lado, encolheu aspernas e adormeceu rapidamente. Ficou a ouvir a respiração dela e a sentiraquele corpo abandonado ao seu lado, indefeso, esperou alguma reação, quem sabea primeira convulsão. Esperou um descompasso na respiração, como uma nota quesaísse do tom. Esperou o arrefecimento do corpo. Quem sabe um vómito. Ela iriaacordar, não tardaria muito, gritando que sentia um fogo a subir-lhe pelopeito, a pedir-lhe que ele chamasse um médico, porque se sentiria a morrer semsaber de quê. Ah, mas ele, que divino ator, soerguer-se-ia de um pulo, poria amáscara da consternação, mostraria todo o susto que a doença dela lhe causava,fingiria até telefonar, tentaria acalmá-la, havia de embalá-la nos braços,passaria uma mão pressurosa pela testa da sua amada e quando o pânico da mortea alcançasse, quando os olhos dela procurassem os seus, aflitos porque chegaraà certeza da morte, ele havia de sorrir, havia de afastá-la dele, deixando-atombar, havia de se erguer sem nunca desprender os olhos dela e começaria asorrir, primeiro só um trejeito, depois um sorriso rasgado e um aceno de cabeçaa confirmar aquilo que ela começava a prever, o terror a espalhar-se pelorosto, as mãos convulsivas levantadas, a surpresa horrorizada de tudo o que eracada vez mais claro e ele diria com frieza: fui eu, é veneno. Mas nada daquiloestava a acontecer e era dele o susto, a surpresa e o horror, ela não tinhatomado o chá, era isso.

            Umalassidão correu-lhe pelos membros, amoleceu-o o falhanço redondo de tudo o quetinha acabado de pressentir, de quase a acontecer. Porquê? Por que é que logohoje tinha ela ignorado o chá? Assaltou-o mais essa revelação, não tinha sidosó o chá a ser rejeitado, tinha sido, isso sim, o gesto dele, o cuidado quepusera na sua preparação e ela tinha-os deixado desprezados: o chá, os gestos,os cuidados. O espinho entrou um pouco mais entre a unha e a carne. Abria-se àdor, entregava-se a ela, os braços alargavam-se para a colher, para a beber atéao fundo da taça. Ela vencia, resfolegara-se com outro e, tão cheia dele e desi mesma, votara-o a um plano inclinado do qual ele escorria inabalavelmentepara baixo, cada vez mais para baixo. Caía cada vez mais depressa e já não erapossível que se salvasse. Convulso – era tão grande a dor, a humilhação cresciacomo massa fermentada ao sol, esboroava-o e rompia-lhe os tecidos, cavandocavernas e aberturas na sua vontade. Esquecido da maneira como tinha preparadoo chá, esquecido de que tinha querido que ela morresse nos seus braços, para apoder fitar de cima, para lhe poder revelar tudo no último momento e para aver, por fim, partir com horror e surpresa nos olhos que até ao fim não sesoltavam dos seus, enquanto as mãos perdiam a força e o corpo se tornava cadavez mole. Mas ela não lho tinha permitido, mais uma vez fazia gorar a suadeterminação e rilhou os dentes. Dor? Raiva? Raiva e dor.

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