Os livros e a (minha) vida
Gosto de tarefas que me libertem o pensamento: conduzir, engomar, cozinhar, esperar num sítio com pessoas, o duche. Foi assim que nos últimos dias me foi surgindo a ideia para este post. Há memórias da minha vida que ficaram para sempre ligadas aos livros que eu estava a ler nesse momento.
1. A escola primária. Foi quando descobri os livros, ou melhor o livro: A fada Oriana, de Sophia de Mello Breyner. Havia um armário com portas envidraçadas ao fundo da sala de aulas. A professora guardava aí a máuina de stencil, os químicos, as cartolinas, algum material diverso e livros, poucos como é de ver. Entre eles, a fada mais mágica de toda a minha vida. Lembro-me tão bem da descrição da casa do lenhador, da melancolia do poeta, do carinho que Oriana tinha pela velha. Oriana é um narciso regatado.
2. Um presente de aniversário que mudou a minha relação com o mundo. Uma tia da minha mãe, que morava em Lisboa, ofereceu-me o primeiro livro que seria mesmo meu: O mistério da Gata desaparecida, de Enid Blyton. A partir daí a ida à missa de sábado passou a ser o dia em que eu comrava um livro, se fosse obediente... Li tudo o que a senhora escreveu e as palavras, chá, pudim, leite creme, scones, leite fresco e manteiga para mim têm sempre associadas reminiscências dessas leituras em que a hora do lanche era profusamente descrita. Até o pão, que eu não apreciava em criança parecia muito apetitoso.
3. As primas que me emprestaram alguns grandes livros, que elas iam comprando e lendo. Eram cinco irmãs que descobriram a leitura à revelia de um pai à antiga que não as deixou ir à escola, porque filhos, filhas em especial, eram para trabalhar e para entregar o salário ao pai. À conta das descobertas delas li 1984, de George Orwell, e Quo Vadis, de Henryk Sienkiewicz. Mais tarde, vi o filme e descobri que havia filmes baseados em livros.
4. A biblioteca da escola. Requisitei Rebeca, de Daphne du Maurier. Aprendi o que era o suspense e os mistérios que se adensam. Depois houve uma telenovela brasileira. Não me recordo do nome, mas a história era a mesma, ou muito idêntica. Descobri a coleção Dois Mundos, dos Livros do Brasil. Achava - erradamente - que os portugueses não sabiam escrever livros. Era comum achar que os portugueses não faziam nada d ejeito naquela altura.
5. As leituras do 11º Ano. Não gostei das Viagens, de Garrett, mas delirei com Eurico, o presbítero. Percebi a meio da leitura que o Carlos e a Maria Eduarda, em Os Maias, eram irmãos. Na altura, não percebi a grandeza de Eça, nem a força deste romance, mas a vida corrigiu essa lacuna.
6. As férias na Nazaré e a livraria do "centro comercial" na cave. Havia uma banca comprida ao fundo que acompanhava todo o comprimento da loja. Expostos e ao alcance da mão, os volumes todos da coleção Dois Mundos, comecei a selecionar a leitura pela lista dos livros publicados que era a contracapa de todos os livros. Descobri Pearl S. Buck e o oriente pelos olhos dela. Nunca mais me esqueci da descrição que ela faz das mulheres orientais: as japonesas são feias, as chinesas são bonitas, as coreanas são lindas. Li de rajada tudo o que ela tinha escrito. Recordo com mais precisão Mandala (ìndia), A Serpente Vermelha, Flor oculta (foi o primeiro) e tantos outros.
7. A feira do livro organizada pela escola. Foram os alunos que desempacotaram os livros, que os marcaram e que os venderam. Fiquei com a banca das Edições 70, pelas quais passei a guardar um carinho especial e quis muito ter O mistério das catedrais. Nunca o tive. Mas comprei dois volumes de Mafalda, do Quino. Anos mais tarde, compraria A Mafalda Toda, que releio sempre que posso. A partir da í, as feiras lo livro na escola parecem-me sempre insípidas e demasiado "pronto a vestir".
8. As leituras do 12º Ano: Ilíada, Odisseia, de Homero, falhei Vergílio. Porque quis, ninguém me mandou, ninguém me obrigou. Apeteceu-me e o fascínio pelos romances históricos nunca mais me abandonou. Vampririzo as pesquisas dos outros para aprender. Depois faço outras pesquisas por minha conta para completar espaços em branco, mas o livro é sempre o ponto de partida. Depois descobri, 10 anos antes do Nobel, José Saramago, quando li a propósito do estudo de Fernando Pessoa, O Ano da Morte de Ricardo Reis, através do qual descobri outro fascínio: o da citação e o da intertextualidade, aquela piscadela de olho que o escritor nos faz, interpelando-nos: será que sabes? CONTINUA NO PRÓXIMO POST... que já vai longa a lista.