Pessoas - uma mulher.
Este não é um texto sobre o Dia da Mulher, apesar de ser escrito neste dia e ser, de facto, uma homenagem. Este é um texto sobre esta mulher na sua inteireza.
É a terceira de onze filhos, nasceu com uma deficiência no pé. Desde que a conheço, desde o tempo em que me conheço, usou sempre o mesmo modelo de sapatos adaptado, o modelo mais anacrónico que se possa conceber. Pretos, atados com cordões pretos, rendilhados no peito do pé, rasos, masculinos quase. Já velhos, porque o modelo é exclusivo e, por isso, caro.
As fotografias antigas mostram-na linda como qualquer estrela de cinema. Foi tão bonita que chega a parecer improvável. Usava um penteado quase curto, bem armado, um porte de senhora. Ao pescoço e nas orelhas, pérolas, ao estilo da Jacqueline. No rosto uma expressão cristalizada, olhar um pouco erguido, o sorriso de sempre na boca.
Casou, jovem - que jovem era - com um cabo-verdiano, embarcadiço, que a levou a viver para o Barreiro, na outra margem. Era raro visitá-la, mas lembro-me de a visitar grávida, talvez do primeiro filho, com uma eterna blusa verde, sobre umas calças pretas. Por causa do pé e da perna nunca, nunca usou saias, nem nos tempos idos da década de quarenta do século passado. Nesse tempo, não trabalhava fora de casa, cuidava dos filhos e esperava que o marido chegasse.
Quando o marido chegava era uma festa, malas e malas abertas na presença de todos, de onde distribuídos recuerdos de todas as partes do mundo. Fixei um sombrero mexicano, que perdurou por anos a fio, facas da argentina, artefactos de madeira e pedra certamente africanos. Numa dessas vezes, trouxe para a minha Madrinha - até hoje é a Madrinha - um largo chapéu de renda branco, que lhe acentuou os traços de estrela de cinema.
Mais tarde, muitos anos mais tarde, tomámos conhecimento do acoolismo - antes de ser considerado uma dependência - e das tareias que apanhava. Depois, o marido desapareceu durante anos e ela ficou sozinha com dois filhos, em idade escolar e ela foi mãe sem queixumes, sempre igual a si mesma. Nunca teve outro homem, nunca procurou outra vida. Depois, anos ainda mais tarde, o marido regressou e entrou em casa como se tivesse sido só uma curta ausência, sentou-se à mesa, deitou-se na cama dela. E ela acomodou-se a essas novidades, sem questionar. Os filhos igual. Depois, não muito depois, voltou a violência e a brutalidade. Um dia, entrou em nossa casa, a cara cheia de hematomas, laivos de sangue aqui e ali, os braços amassados. tinha conseguido fugir. Ele tinha andado à procura dela com um fio elétrico nas mãos e uma embalagem de inseticida.
Fez-se entre todos um silêncio. Ele deixou de vir a nossa casa. Só vinha quando a minha mãe estava sozinha e nunca, nunca, falaram daquele assunto. É assim. Todos diziam que ele era muito boa pessoa, era o vinho. É assim que o recordo, como boa pessoa, porque, para todos nós, foi sempre bom, para ela é que não. Depois, um dia voltou a desaparecer. Até hoje. E ela ficou outra vez sozinha e vive como se sempre tivesse sido assim.
Trabalhou durante anos e anos, naquelas profissões que uma mulher pode desempenhar sem qualificações. Comprou um carro, tirou a carta, já bem tarde na vida. Criou os filhos, ajudou-os a constituir família. O mais velho vive em Itália, um ano destes, ele pagou-lhe a viagem para ela o visitar e ela foi, sozinha, sem medo, sem receios, porque nunca os teve. Adoeceu gravemente, uma primeira vez, esteve internada, com enfisema pulmonar. Tem um problema respiratório crónico que a debilitou muito. Recuperou, voltou para casa, continuou a trabalhar. Adoeceu gravemente pela segunda vez, teve cancro em plena pandemia, foi operada, recuperou, pesa 38 quilos. Pesa-se sempre depois de comer, porque é quando pesa mais.
Digo isto tudo, não como quem narra uma história miserabilista, de fazer chorar as pedras da calçada. Não dessa maneira. Digo-o a seco, porque é assim, porque esta mulher fustigada pela vida é a pessoa mais inspiradora que conheço. É a mais divertida. É a mais resiliente. É a mais generosa. É a mais abnegada. É a mais corajosa. Às vezes, penso nela e sorrio, porque pensar nela faz-me bem. Foi a minha segunda mãe. Lembro-me de ficar muitas vezes em casa dela, durante muitos dias, de ela estar a passar a ferro e de me deixar brincar a passar a ferro com a escova do fato e dizer-me que não conseguiria acabar se não fosse com a minha ajuda, e de me sentir importante. Nunca ralhava. Tinha umas chávenas Bordallo Pinheiro, coleção da couve. Era a pessoa mais carinhosa e, ainda assim, não era comum haver abraços e beijinhos, mas o afeto andava por lá, mesmo sem nome. Vive de uma pensão de subsistência, mas não é só disso que vive, sustenta-se também de uma rede familiar que providencia tudo aquilo que a sociedade - essa abstração - não fez, não faz por ela.
É difícil explicar, é difícil entender. Apesar de estar tanta coisa errada neste percurso, está tudo certo.