Post sem livros lá dentro
É um senhor de idade. Cruzo-me com ele quase todos os dias no restaurante onde almoço.
É um cavalheiro à moda antiga, de uma delicadeza como não há. É uma pessoa doce.
Cede a sua vez quando nos aproximamos. Diz que não tem pressa. Tem o dia todo.
Fica atrás de nós na fila, mas sorri sempre.
Graças a este encontro diário, começámos a ter breves conversas.
É viúvo há quatro anos. Diz que durante o dia não lhe custa muito. Custa é quando chega a noite. Sente-se muito só. Diz que é terrível. Diz que vacila.
Contou que a sua mulher foi o amor da sua vida. Uma paixão única. Não quer outra mulher. Nem pensar nisso.
Vai uma vez por mês ao cemitério e uma vez por mês à Igreja, porque a mulher era crente e muito praticante. Diz que esse dia é angustiante, que a ansiedade que o domina é sufocante. Disse-lhe que, se era assim, que seria melhor não ir. (A nossa sobranceria!). Diz que não, que sente que tem de ir. É uma homenagem ao amor da sua vida.
Não está zangado. Nem revoltado. Sorri. É amável. Apenas esta só.
Disse-lhe a rir que podia arranjar um cãozinho. Respondeu-me que tem cinco gatos. Sentam-se com ele na sala. Os gatos em cima do sofá. Pôs uma manta para não lhe estragarem o estofo. Ele senta-se numa cadeira. Veem juntos a televisão.
Ofereceram-lhe um livro. Enorme. Já leu cem páginas. Disse que queria muito lê-lo, porque o senhor que lho ofereceu o fez com tanto empenho. Não o quer desiludir.
Prometi que lhe levava um livro. Perguntou-me sobre o que seria. Disse-lhe que ainda não sabia. Realçou que primeiro tinha de ler o outro.
Queria muito que um livro minimizasse aquela solidão.
Hoje cruzei-me com a solidão. É humana, tem corpo. Estava ali à minha frente.
Às vezes nem os livros são suficientes para adiar o fim do mundo... nem afastar a solidão.