Às vezes também saio de casa: instantâneos da Serra da Estrela III
Tanta coisa para contar uma escapadinha só pode significar uma de duas coisas: ou que viajo pouco, ou que a viagem foi muito interessante. Enfim, também pode ser falta de experiência, afinal isto é um blog sobre livros e eu ando por aqui a meter a foice em seara alheia. Pois bem, o blog é meu...
Então, no dia seguinte, logo pela manhã, passagem por uma mercearia para adquirir bens essenciais, que foram pão e cerejas. É verdade, queijo da serra não se encontra em qualquer lado! Viagem até Manteigas, com uma manhã gloriosa, mas fresquinha já se sabe. Em Manteigas, logo à entrada, há uma loja que vende queijo da serra e foi logo ali - eu sei, devia dizer o nome, mas já não me lembro. Escolhemos um queijo curado, o amanteigado pareceu-nos arriscado e um paio do cachaço. O senhor disse-nos que o queijo era artesanal e que até a casca se comia: e amáquina diz que é verdade! Entretanto, comecei a ficar preocupada com a forma como iríamos partir o queijo e o paio em plena serra e, num repente do meu maior descaramento, perguntei se o senhor nos emprestaria uma faca - inteligentemente perguntei antes de pagar - que lha devolveríamos seguramente ao fim do dia, dando-lhe a minha palavra. Pois disse que sim e com um ar muito grave, acrescentou que, se não o fizéssemos, seria um problema da nossa consciência (Eu disse que havia facas). Devidamente abastecidos, fomos procurar um táxi que nos levasse ao Covão da Ametade.
Eu ainda não disse, mas eu sou um co-piloto horroroso, que acha sempre que quem vai a conduzir está a fazer uma condução suicida, de maneiras que fiquei muito feliz por o motorista que nos calhou ser um respeitável senhor de cerca de setenta anos que, sem dúvida, conduziria tranquilamente, permitindo-me apreciar a paisagem com toda a calma. Mas o demo andava à solta. O plácido senhor era um piloto de rális travestido de motorista de táxi e percebi isso assim que arrancou, com uma guinada e uma travagem muito brusca dois metros mais à frente. E estava marcado o ritmo, acelerar serra acima, comigo a encolher-me no banco de trás, convencida que o carro iria raspar pelas paredes de rocha, que a minha vida terminaria depois da próxima curva, que aquela ultrapassagem com um peão de frente não podia estar a acontecer, que, com uma camioeta à frente ele só podia acalmar, mas não ultrapassou-a também. O meu mais que tudo, apesar de ir com as minhas unhas cravadas na palma da mão, levou a curta viagem toda com um sorriso sardónico. Enfim, quando me vi a sair do táxi, pensei para mim que a caminhada podia ser de cinquenta quilómetros que eu iria a pé até Manteigas, chamar um táxi acabava de estar fora de questão. Quando ficamos a só, ouvi a pergunta: que dizes agora à minha condução, tive de dizer suave e segura.
Mas, assim que me vi no prado do Covão da Ametade, esqueci aquela corrida mais louca do mundo e deixei que aquela beleza me inundasse e ficámos ali um bocadinho a sentir o sol, a ver o verde, a ouvir os pássaros, doidos naquela manhã... e comi cerejas. Foi tão bom que ainda duvidei se tinha sobrevivido ao táxi. Depois, depois foi a caminhada. O trilho segue cerca de quinhentos metros ainda na estrada, invertendo de repente para dentro do vale do Zézere. É um descida abrupta, por entre vegetação muito alta, muitas árvores, saltando de pedra em pedra, um pouco escorregadio, mas que me foi deixando cada vez mais convencida que era melhor fazê.lo a descer do que a subir. A Primavera estava ali em força, havia flores por todo o lado, borboletas de todas as cores (predominavam os vermelhos e os acastanhados), o caminho era cortado com frequência com ribeiros que se precipitavam serra abaixo para se juntarem ao rio que ia engrossando a voz bem abaixo de nós. Nesta vereda estreita ainda nos cruzamos com outros caminheiros que subiam. Um tempo depois, a vereda tranforma-se num estradão largo, aberto, mas sem nunca se aproximar do rio que, ainda assim, corre bem abaixo de nós. O prado espraia-se um pouco e avistam-se os primeiros abrigos para os rebanhos e, mais uma vez, fica marcado o tom: será assim toda a descida para Manteigas. Apenas quando o caminho nos leva a cruzar o rio para a margem esquerda, olhamos de frente o rio, que ali se tranquiliza antes se se lançar por pequenas cascatas por entre os enormes blocos de granito. Ali, naquela candidata a praia fluvial, nos sentamos e provamos do nosso almoço. Tudo maravilhoso. E ainda arranjei coragem para estar de pés mergulhados na água, sem que a circulação fosse cortada pelo frio. A descida para Manteigas manteve-se suave e a caminhada faz-se quase sem se sentir. Os painéis informativos ajudam a reconhecer as espécies florais, os insetos e os animais.
À chegada a Manteigas, devolvida a faca, o objetivo era ainda fazer um outro trilho - seriam mais cinco quilómetros, o das faias, mas era preciso fazer com os dez quilómetros deste fossem esquecidos, por isso sugeri que subissemos ao vale do Rossim, para descansarmos à beira da barragem e, como a cortada para o trilho das faias ficava a caminho, seria mais fácil sugeri-lo com um ar perfeitamente desprevenido, qualquer coisa como vamos ver o que é isto, olha um trilho, ainda podíamos fazer, dava tempo... Tudo muito verto, mas não contei com o vale do Rossim, esse sedutor.
A praia fluval do val e do Rossim fica na zona das Penhas Douradas, é absolutamente tranquila, o azul da água espelhava o azul do céu, a água é limpída e, acima de tudo, tem um bar, com uma esplanada fantástica, umas espreguiçadeiras para estes exaustos caminheiros e não houve nada que nos arrancasse dali. Além disso, estava sempre a passar música excelente e os pequenos que estavam à frente do espaço sabem geri-lo, sabem, sabem. Que tarde! Li até me cansar e depois deixei-me só ficar, numa conversa vadia e preguiçosa, até o sol começar a cair e começar a fazer-se sentir um friozinho que já nos empurrava dali para fora.
Descemos a serra ao mesmo tempo que a noite caía e, quando chegamos a Manteigas, começámos a pensar que chegaríamos tarde para jantar na Covilhã, pelo que consultámos o "ti" Google para encontrar recomendações e pareceu-nos que a Queijaria de Manteigas seria boa escolha. E foi. Para não vos maçar, é um sítio muito descontraído - mas encheu - que serve petiscos e tem um atendimento jovem, muito, mesmo mesmo muito amável e atencioso, do género, podem ir pedindo, não peçam tudo de uma vez... Saiu uma tábua de queijos enchidos - não sei se da caminhada, mas tudo me pareceu sublime - uns pastéis que eram a especialidade do dia, uma compota de medronho, um tinto macio, diz que era um vinho de altitude, uma tarte de frutos vermelhos bem alternativa e o bolo de chocolate, ai o bolo de chocolate.
Pois, como disse, foi um final feliz... quer dizer, depois do jantar foi preciso regressar à Covilhã, novamente pela estrada que serpenteia pelo vale glaciar, numa escuridão que nada quebrava, um breu mesmo. Fiz o caminho caladinha, muito assustada, mas sem dar parte de fraca, que estas ideias são minhas. Depois das Penhas da Saúde o mar de luzes da Covilhã e do Fundão faziam a noite mais acolhedora.
Não vejo a hora de regressar à Serra da Estrela e ver se daria para me mudar para lá, vive em mim, alojada na minha alma, uma montanhesa.