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Livros para adiar o fim do mundo

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Livros para adiar o fim do mundo

29
Jan24

#6/2024 - As Primas, Aurora Venturini: um livro intrigante e cru

livrosparaadiarofimdomundo

As Primas

Alfaguara

203 páginas

A 29 de janeiro do ano da graça de 2024, leio a um ritmo que não me permite escrever sobre tudo... e tudo o que tenho lido tem valido bem a pena.

Este foi o sexto livro deste ano, depois do melhor aniversário de sempre: finalmente as pessoas compreenderam que eu adoro receber livros, não faz mal que toda a gente me ofereça livros. Confesso que também foi importante deixar escapar a minha wislist. Enfim, depois de uma semana de trabalho duríssima, a verdade é que estava ávida pelas horas de leitura do fim de semana e este As primas foi lido de rajada e valeu bem a pena.

Quem me lê, sabe que eu não evito livros difíceis, nem polémicos, nem incómodos, nem que causem dor, daí que este livro me tenha absorvida nas horas que levou a sua leitura. Não o conseguia largar.

É um livro muito cru, conforme se lê no prólogo, escrito por um dos elementos do júri do prémio que o llivro viria a ganhar. Nas primeiras páginas, fica-se com a sensação de que fomos apanhados numa espécie de "apanhados dos livros" tal a estranheza que a escrita, primeiro, e as personagens, depois, nos causam. A escrita obedece a um ritmo de fluxo de consciência entrecortado por causa da deficiência de que a personagem princiapl e narradora é portadora. A galeria de personagens, sobretudo femininas, está profundamente marcada por toda uma série de deformações, enfermidades, obsessões, melancolias e tristeza. Como mulheres e entre mulheres são, facilmente, objeto de violência, abandono, pobreza, desgraçadas. 

A narrativa constrói-se a partir da perspetiva de Yuna, que, encontra na pintura uma forma de escapar literalmente ao ciclo que parece atingir as mulheres da sua família, aquele circo, ou lugar de bruxas, de que ela vai dando conta, ao memso tempo que vai tomando consciência da sua condição, da maldade dos outros, da impossiiblidade de confiar, sabendo que ninguém cuidará dela. Yuna apresenta-nos, na sua inocência, uma história de superação, de esforço, de resiliência, de trabalho que faz dela uma herína improvável, mas com todas as características das grandes heroínas da literatura, ainda que o seu ponto de partida seja muito mais desvantajoso.

Por causa de Yuna, este é um livro lindíssimo, surpreendente, original e cheio de poesia num contexto inóspito. Também a escrita reflete essa excentricidade. Em suma, temos um livro que é ambíguo, estranho, surpeendente, belo e cheio de esperança. É, como se lê na contracapa, "um romance perversamente genial". Para mim, já foi uma das melhores leituras de 2024. Recomendo que arrisquem, que se atrevam a não deixar de mergulhar neste livro. Acredito que não se vão arrepender, porque nso coloca questões que gostaríamos que não nos fossem colcoadas e que, raramente, aparecem desnudas em obras literárias. Apetece-me dar os parabéns a Aurora Venturini e sonhar que um dia posso ser como ela.

Outro dado que faz deste livro um caso peculiar é, como se sabe, o facto de a sua autora, Aurora Venturini, o ter escrito aos 85 anos, vencendo um prémio para novos talentos, quando já tinha vários livros publicados, tornando-se finalmente reconhecida pelo seu valor literário.  

Tudo é surpresa neste livro... preparem-se para o final.

19
Jan21

#3/2021 - Adeus, até amanhã, de William Maxwell: pequenas obras, grandes prazeres

livrosparaadiarofimdomundo

Wook.pt - Adeus, até amanhã

Sextante Editora,

140 páginas

Espero que ninguém consiga ler as letras pequeninas, mas, apesar de ter prometido que, em janeiro, só leria livros que tivesse começado e posto de lado, este comprei-o. Tenho uma desculpa, tinha um desconto de 5 euros na Wook e o livro custava 6 e qualquer coisa, mas depois achei que pagar só 1 euro era indecoroso e comprei outro e gastei 14 euros, mas fiquei feliz, os livros tinham desconto. Já sabemos que 2021 não é mais meigo que 2020, o que se vê nestes pequenos dissabores.

Não me consigo lembrar onde é que li sobre este livro, mas eu não sou difícil de convencer e, sempre que um livro é anunciado com epítetos como "um pequeno romance perfeito", uma leitora compulsiva sente-se como uma solteirona a quem dizem que vai ter um date com o George Clooney, porque a Amal vai trabalhar até tarde. Ninguém resiste.

Adeus, até amanhã tem tudo o que eu gosto num livro, uma escrita maravilhosa, maravilhosa, repito, porque só uma vez pode parecer pouco convincente. Faz lembrar a poesia de Fernando Pessoa, cuja simplicidade de vocabulário é desarmante, mas que atinge uma complexidade quase impenetrável (que o digam os alunos do Secundário). Num estilo límpido, pouco ornamentado, fluido, mas com uma linguagem cuidadosa, o autor acompanha os fragmentos do passado que o marcaram de forma indelével. A memória é a estratégia narrativa dotada e, já se sabe, a memória é a memória da memória, é uma reconstrução, é uma tentativa de reorganizar, de criar um mundo a partir do caos. 

O narrador volta-se para um episódio da infância que o marcou para a vida, gravando no seu espírito a culpa, a perda e o arrependimento para sempre. Voltar-se para o passado é interrogá-lo, é uma tentativa de o superar, de o compreender, de o corrigir, não quer é dizer que a tentativa seja bem conseguida. Dito assim, pode parecer pouco, mas este romance, apesar de o seu tamanho é monumental. Está ao nível de um Tolstói das novelas, é depurado, seco, duro, mas de uma sensibilidade incomparável, tudo é tão delicado, tão frágil, tão assustador, tão incompreensível e também tão cruel.

Desprendem-se destas páginas fiapos de uma certa América, rural, fechada, machista, pobre, inculta, onde as crianças trabalham nas quintas arrendadas pelos pais desde cedo, em que a escola rouba tempo às colheitas e aos animais, em que os homens parecem vazios de sonhos e, quando conhecem a paixão, ela só pode ser trágica, porque é desmedida e incontrolável. Em que as mulheres se esqueceram da sua feminilidade, até que ela surge nos espelho dos olhos de alguém e se descobrem merecedoras de viver a paixão que nem sabiam que podia ser sentida. Em que a mentalidade é muito pouco cosmopolita, em que Deus e a Igreja ocupam um espaço que castra e condicona. Em que o estigma da homossexualidade espreita e devora quem é um pouco mais sensível. Em que a morte, o abandono e a degradação estão omnipresentes, em que a queda se anuncia e se precipita como uma avalanche, sem apleo, sem remédio, sem redenção.

A pergunta que vos incomoda neste momento é, decerto, como é que um livro de pouco mais de cem páginas pode ter isto tudo e um pouco mais que não consigo exprimir em palavras? Porque é perfeita, porque é um exemplo de que menos, embora raramente, é mais, muito mais. é um livro lind´ssimo, delicioso, precioso. Gostei tanto.

PS: também foi uma sorte ser tão pequeno. A minha concentração anda em níveis assustadores de tão baixos, estou praticamente em coma, ou pelo menos, vivo como se tivesse sido programada para desempenhar as funções que me ficaria muito mal não desempenhar. Mas ler este livrinho ressuscitou-me um bocadinho, oxigenou-me este cérebro intoxicado de negativismo, de desesperança nesta humanidade que naõ conseguimos sublimar. Que os livros nos salvem um bocadinho.

21
Dez20

Um ano de livros para adiar o fim do mundo: parabéns!

livrosparaadiarofimdomundo

Dia Mundial do Livro - 10 curiosidades incríveis para leitor nenhum deixar  passar!!! - A Odisseia

Há alturas em que não sei muito bem sobre que escrever aqui e deixo passar algum tempo. Parece que não tenho muito jeito para o imediatismo deste presente social que vivemos. Para hoje, por acaso, havia dois ou três assuntos que queria abordar aqui e que ficam desde já prometidos: a minha última leitura - reli O velho que lia romances de amor - de Luís Sepúlveda; umas dicas giras, ecológicas e amorosas para presentes de Natal; um resumo deste ano 2020 - agridoce, agridoce este ano. Enfim, eis que abro o meu mail e o que é que lá está? Um relatório anual do blog. Foi uma ultrapassagem nos últimos metros: hoje o post tem de ser isto.

Assim, parece que há um ano iniciei este blog: "102 posts, que geraram 32 reações e 160 comentários. Foram mais de 5133 visitas, que geraram 9056 visualizações (entre comentários, pesquisas e todo o tipo de consultas)". Fiquei surpreendida, claro está, não imaginava este números - eu sei que são modestíssimos comparados com o Casal Mistério ou com a Pipoca Mais Doce, mas eu não estou na 1ª Divisão e não vou à Taça dos Campeões. Ainda assim, ter havido 5133 visitas a este blog e 9056 visualizações é um estrondoso sucesso relativamente ao ano de 2019. Afinal, em 2019 não havia blog, logo há um crescimento de cem por cento; mantive este blog ativo durante o ano mais exigente da minha vida - mas isso fica para outro post; superei alguma tendência para a procrastinação, para a desistência; houve 102 dias no ano em que me sentei a escrever. Mas, o feito maior de todos é manter alguma regularidade nas leituras acerca de assuntos que não são fáceis nem especialmente apelativos: livros e leituras sobretudo. E, cereja em cima deste meu bebé, houve quatro momentos no ano em que fui honrada com destaques na página do Sapo.

Estou feliz com este meu "bordado" que vou entretecendo ao sabor dos dias, de uma inspiração que é volátil, uma continuação do gosto da leitura, uma troca de experiências de que gostei sempre muito. Falar sobre livros é um dos meus passatempos favoritos e escrever sobre eles e trocar impressões com desconhecidos fica muito próximo disso. Por outro lado, o blog faz com que tenha mais consciência das minhas leituras e dos ritmos ao longo do ano, daí ter a impressão de que este ano li um pouco mais

Obrigada a todos os que me leram ao longo deste ano. Obrigada aos leitores que se mantiveram fiéis e assíduos - são poucos, mas bons. Obrigada à minha querida amiga que acreditou em mim e nas potencialidades deste blog antes de mim. Sem ela esta avantura nunca teria acontecido. Esta efusividade pode arrancar algumas expressões desdenhosas, afinal não subi nenhuma montanha, apenas dei uns passeios tranquilos pelos bosques da ficção, mas também eu nunca quis subir ao Olimpo, fico por aqui no rés dos blogs.

20
Dez20

#44/2020 - Mrs. Caliban, Rachel Ingalls: como um bordado.

livrosparaadiarofimdomundo

Wook.pt - Mrs. Caliban

 

Editora Cavalo de Ferro

126 páginas.

... foi comprado para oferecer, não estava embrulhado. Juro que ia só espreitar! Mas estava à lareira, li uma página, depois outra, li todo. É bastante sustentável, era um livro que eu queria para mim, agora já não vou comprar. Acho que para o ano vou oferecer livros a toda a gente que conheço, fica sempre bem, começo já a comprar em janeiro e embrulho em dezembro. Não há nada como antecipar e fugir às confusões de última hora.

Este Mrs Caliban fez-me lembrar o enredo do filme A forma da água: há um monstro aquático, uma história de amor, mais algumas coisitas em comum. Mas fui pesquisar e, pelos vistos, não têm nada a ver um com o outro. Este romance, que é considerado perfeito, é de uma delicadeza extrema. É uma obra pequenina, lê-se de um fôlego, é um pequeno prazer. A história é simultaneamente triste e alegre. Quando a vida nos dá limões azedos, quando não nos conseguimos libertar da nossa própria existência e daquilo que nos faz sofrer, às vezes suregem formas de evasão que poeticamente nos salvam. É isso que acontece a Dorothy, presa a um casamento infeliz, tratada com indiferença pelo marido, entregue à sua rotina, onde sobrevive mais do que vive. 

O livro, na sua ambibuidade, é belíssimo e Dorothy é uma heroína trágica, bondosa, naif, pura e sonhadora, que encontra em Aquarius tudo o que lhe falta na vida e que pode manter enquanto conseguir aguentar a ilusão.

Vão ler, é bonito, é simples, é como um pequeno bordado, uma filigrana. Gostei muito.

 

20
Set20

#30/2020 - Rua De Paris em Dia de Chuva, Isabel Rio Novo: literatura e artes plásticas

livrosparaadiarofimdomundo

Wook.pt - Rua de Paris em Dia de Chuva

Editora Dom Quixote

228 páginas

Sou uma curiosa acerca da pintura, uma amadora. Interesso-me especialmente pelo Renascimento, em primeiro lugar, e depois pelo Impressionismo - talvez o movimento/período que mais me seduz - mas também o modernismo e o cubismo. Estou sempre disposta a aprender e a saber mais sobre este tema e, apesar do meu interesse de anos, continua a sentir-me ignorante a esse respeito. Por este motivo há um tipo de livros a que não resisto, aqueles cuja ação se relciona com a pintura, com a biografia dos pintores, com aspetos emblemáticos de uma escola ou de um movimento. Este ano de 2020 já me trouxe o maravilhoso O nervo óticoFala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes de que já vos falei aqui no blog, e há mais tempo o também extraordinário O paraíso do outro lado da esquina, de Vargas Llosa.

Tão longa introdução para chegar ao livro de Isabel Rio Novo, mais uma que me fez ficar verde de inveja. Rua de Paris em dia de chuva - o título é retirado do título da obra maior de Gustave Caillebote, mecenas que conheceu os nomes grandes do impressionismo, mas que foi ele mesmo um importante artista, autor  de de centenas de quadros, mas que permaneceu na sombra de outros pintores impressionistas. Mas não foi apenas pela escolha do tema que me rendi a este livro, ele é mais, muito mais do que isto que acabei de enunciar.

Comecemos pelo facto de este livro ser híbrido quanto ao género, oscila deliberadamente entre a biografia (fantasiada em alguns aspetos, verdadeira noutros), a pesquisa histórica e artística, metarromance, diário de bordo. As personagens que nele se cruzam atravessam séculos, países, espíritos, derrubando os limites físiscos quer do tempo, quer do espaço. Todas são fascinantes, ensimesmadas, reflexivas, perseguindo objetivos de vida que se tocam e se interligam, resultado do fascínio, da curiosidade, dos acasos e das coincidências que por vezes nos sobressaltam por parecerem evidências de um plano que desconhecemos.

A escrita é muito segura, interessante, surpeendente. Indaga-nos, interprela-nos e obriga-nos a refazer o esquema mental da própria leitura, levando-nos sempre a sair do livro, para, por exemplo recordarmos a visita a Giverny à casa de Monet, imaginando a partir dessa visita o ambiente onde circulou Caillebot e talvez a sua própria casa. É preciso também fechar o livro para aproveitar o facto de a capa reproduzir o quadro de Caillebot. É preciso pegar no telemóvel e fazer pesquisas na internet para percebermos de que fala a Autora quando se refere às obras de Caillebot: Lixadores de Chão, por exemplo. 

E há a referir o facto de a Autora/narradora se recusar a pertencer ao paradigma da narrativa do século XIX de que muitos escritores se fizeram herdeiros. Ela é a Autora, personagem do seu próprio romance, que nos fala do seu fascínio por Gustave Caillebot, do seu processo criativo, da sua própria indagação  a respeito deste artista. 

É uma obra fascinante, complexa, inteira, segura e um excelente momento de leitura, uma aula de história de arte, regressei pela memória às minhas aulas de Literatura e Artes plásticas. Leiam, como exercício sensorial. É um livro que vou reler, com aqueles vagares de estudo. Quando o estava a ler, estava a gostar tanto que me lembro de tentar ler devagar, para prolongar o prazer.

 

 

25
Mai20

#23/2020 - Crónica de Um Vendedor de Sangue, Yu Hua: a desconcertante ingenuidade no meio da tragédia

livrosparaadiarofimdomundo

Wook.pt - Crónica de um Vendedor de Sangue

Editora: Relógio de Água

Páginas: 240

Da Biblioteca escolar

Durante o ano letivo 2018-2019, a escola onde trabalho foi selecionada no âmbito do Concurso Leituras d'Oriente e d'Ocidente, que visava promover o diálogo entre estes dois universos culturais precisamente através da Literatura. Um dos incentivos do concurso era precisamente a aquisição de obras para a BiBlioteca Escolar. Foi toda uma pesquisa e uma descoberta não só de autores, mas também dessas outras formas de pensar e de entender o mundo com que a arte e a cultura nos permitem contactar, para encetarmos diálogos e das interpelações aprendermos a aceitar o outro, a criarmos com ele empatia. A verdade é que o acervo da biblioteca ficou bem mais rico e, sobretudo, diversificado.

Esta Crónica de Um  Vendedor de Sangue fez parte dessas aquisições. Em tempo de confinamento, requisitei-o e trouxe-o para casa, mas só lhe peguei na última quinta-feira. A contracapa apresenta-o como um dos dez livros mais influentes da última década na China, além de ser da autoria de um dos mais importantes escritores chineses contemporâneos. A sua leitura estabeleceu um diálogo inequívoco com um outro livro, este de Mo Yan, Prémio Nobel, Peito Grande, Ancas Largas, porque ambos traçam um retrato impiedoso, mas cândido, das últimas décadas da história da China, com especial enfoque nos anos do presidente Mao (embora Mo Yan faça uma incursão também muito aprofundada pela ocupação japonesa).

É um romance de família, porque acompanhamos o percurso de Xu Sanguan, casado com Xu Yulan, e dos seus três filhos. Até aqui nada de muito improvável, parece mais uma história, mas não é. Este é um livro original, com um discurso que eu diria desconcertante, porque parodia uma certa ingenuidade na apreensão dos acontecimentos que vão sendo desfiados ao longo do relato. O título remete para uma prática que se afigura comum: as pessoas vendiam o seu sangue aos hospitais, duas tigelas. A venda do sangue obedecia a uma série de práticas e cuidados, para dar mais fluidez ao sangue, bebia-se água até "doer os dentes", depois da venda, comia-se fígado de porco frito e bebia-se aguardente de arroz. Este é um pequeno fio que se entretece no romance.

O livro é enternecedor e comovente na forma como esta família enfrenta e resolve os seus problemas, sejam eles económicos, sociais, de afeto, de relação com a vizinhança e com o passado. No final, o livro é uma belíssima história de amor, de abnegação, de encontros e desencantos, de personagens inesquecíveis, de laços que nada parece quebrar. É ainda o desnudar de uma certa visão da China pelos próprios chineses, de uma pobreza que agudiza o engenho, da dádiva de pequenos gestos que humanizam e resgatam estas personagens de uma indigência a que parecem ser indiferentes.

É uma história que prende, que lemos, pela qual avançamos, comovidos mas perturbados. Destas páginas erguem-se figuras que representam uma trajetória de redenção em meio a enormes adversidades, que cuidam umas das outras, que cedem, que tocam, que amam e que expressam esse amor, por exemplo guardando açucar para as papas em dia de aniversário, ou poupando bagos de arroz da porção diária que hão de ser providenciais em tempos de fome. 

É preciso lermos livros assim, para fazermos um exercício cada vez mais pertinente: calçarmos os sapatos dos outros e percorrermos um pouco os seus caminhos.

18
Mai20

#21/2020 - Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes, Mathias Énard, é o domínio da linguagem, senhor

livrosparaadiarofimdomundo

Wook.pt - Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes

Editora Dom Quixote

Páginas:159

Género: romance histórico (mas em bom, muito bom)

Comprado, graças a Deus! Senão teria de o comprar depois de o ter lido.

O interesse por este livro veio de uma lista deveras interessante que vi no sítio do Sapo, por ocasião do Dia Mundial do Livro e que era uma espécie de caixa de chocolates: uma lista com dez grandes obras com menos de 200 páginas para ler de um fôlego. Claro que copiei a lista para o meu caderninho com muita aplicação, cheia de vontade de os comprar a todos. Eu me confesso: experimetei colocá-los todos no carrinho da Wook, só para ver quando dava... depois desisti, mas com relutância. Depois fiz outro exercício, fui eliminando aqueles que achei que podiam esperar e sobrou este, em boa hora.

Defina este livro numa só palavra: MARAVILHOSO!

Apresente uma só razão para recomendar este livro a um amigo: o domínio magistral das virtuosidades da linguagem. Li devagar, saboreei deliciada cada frase, quase cada palavra. Decidi não o colocar na estante para o poder ler outra vez

Resuma o livro  com uma metáfora: uma jóia perfeitamente engastada e lapidada.

Defina o livro através de um símbolo: a ponte, as pontes, as projetadas, as que nunca se lançam, as que unem, as que estendidas nunca representam a junção.

Este livrinho ficciona a estadia do grande Miguel Ângelo Buonarrotti na Constantinopla do Grão-Turco, arriscada heresia. O momento em que o escultor desafia o Papa, pondo em risco a sua carreira, dando mais motivos às muitas invejas que se movem contra si, é igualmente o momento em que o Ocidente e o Oriente se defrontam. A visão de Constantinopla, diversa, dispersa, rica, opulenta, culta e heteróclita atinge a visão do homem do Renascimento, preso ainda às grilhetas do cristianismo, ao medo de perder a alma e à doce tentação de se deixar ir.

A obra está continuamente a reenviar-nos para as referências culturais do Renascimento e do próprio ocidente, bem como para esse lugar do mundo que continua a ser a foz onde desaguam dois mundos diamentralmente opostos: o ocidente e o oriente, a Europa e a Ásia, primeiro lugar da globalização. As referências à multiculturalidade da cidade de Constantinopla são recorrentes: gregos, judeus, genoveses, florentinos, latinos, refugiados de Granada, após a tomada do Reino pelos Reis Católicos. A obra resulta como a partícula do Big Bang, pequenina, mas carregada de significado, tal como é frenética e, ao mesmo tempo, marcada por uma certa placidez e vagares ritualizados, a cidade fascinante de Constantinopla. É toda uma Geografia destes tempos de ouro para a cultura, no entanto, mergulhados nas mesmas hesitações, confrontos, dúvidas, fraturas que até hoje não só não cicatrizaram como antes se parecem ter reaberto expondo uma ferida infetada.

Depois, é verdadeiramente, o fascínio da linguagem, servida com a delicadeza de um prato exótico, com uma riqueza sensorial que satura os nossos sentidos. Partindo das listas que Miguel Ângelo anota no seu próprio caderninho, cada palavra tem o aroma das especiarias, a suavidade dos tecidos ricos, a harmonia dos perfumes, o brilho das jóias. Apetece lê-las em voz alta, sentir a espécie de euforia dos sentidos que nos despertam ao mesmo tempo que parecem excertos de versos compostos pelo poeta que é também personagem do livro.

Por fim, o fascínio desta leitura vem de um certo encantamento que resulta de uma hábil, sábia e inteligente fusão de História e Ficção, que assenta também na paródia dos registos histórico, administrativo, poético, biográfico, memorialístico. Todos estes modos de dizer se fundem, se mesclam inebriando mais uma vez a perspicácia do leitor. A nota final, longe de tirar o encanto ao imaginário que se construiu ao longos destas curtas páginas, antes é mais uma nota de surpresa que torna o livro e a sabedoria com que foi escrito ainda mais cativante.

Para quê gastar aqui mais palavras? Se isto não vos convence a correr para o ler, nem sei para que o escrevi.

É - poucas vezes digo isto - a jóia da minha estante. É - ainda digo isto menos vezes, porque há tantos bons livros na vida - um dos livros da minha vida.  

 

04
Mai20

#18/2020 - Fim, Fernanda Torres - a ressaca da vida

livrosparaadiarofimdomundo

Wook.pt - Fim

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 187

Origem: promoções do dia Mundial do Livro

Para guardar

"Uma vez, li que a morte era o momento mais significativo da vida, e é mesmo. A minha foi boa, está sendo, não por muito mais"

Este livro já se tinha cruzado comigo algumas vezes e fiquei sempre com vontade experimentar. Fernanda Torres, como é sabido, é filha da atriz brasileira, A Senhora Fernanda Montenegro (vénia), ela própria atriz também que a minha geração conhece e recorda das telenovelas brasileiras. Essas circunstãncias deixavam-me curiosa. Quem - na minha persptiva - conhecendo o sucesso e a fama por via da representação se dá ao trabalho de se dedicar à escrita, um ofício tão penoso e tão angustiante? Não há nada mais steressante que uma folha em branco, seja a primeira página do livro, do estudo, do teste, da tese. A página em branco é uma tortura.

Acontece ainda que esta é a obra de estreia de Fernanda Torres e a "desgraçada" conheceu uma fortuna crítica muito, muito invejável. A raiva que dá romances de estreia assim. Além do mais, nomes sonantes da cultura "encomendaram" o livro com admiração: Mario Sergio Conti, Manuel da costa Pinto, Antonio Cicero, João Moreira Salles, entre outros. Consensual é o reconhecimento da mestria e da técnica narrativas da autora.

O livro conta-nos a história, ou melhor o fim da história de cinco amigos cariocas. Como o título anuncia - portanto não há aqui spoilers - estas cinco personagens encontram-se no fim da vida, aliás o romance narra o momento exato da morte de cada um deles, vivido e descrito com intensidade. Atenção, não há lamúrias, não há clichés. Há sim, reviravoltas, clarividências, arrependimentos também. As personagens estão longe, muito longe, dos heróis românticos que determinada literatura cultivou. pertencem todos eles muito mais à categoria de anti-heróis e, na sua fraqueza, cinismo, violência, deboche, boémia, não deixam de nos ser simpáticos. São homens, as plavras que os cinzelam nestas páginas são cruas, são verosímeis, são cruéis e brutais em alguns momentos, moralmente discutíveis a passos. O romance está dividido em tantos capítulos quantas as personagens, a técnica adotada oscila entre o fluxo de consciência e a hetero narrativa (não sei se isto existe), mas cada um dos amigos completa no seu capítulo a visão dos outros, sendo que, do conjunto, resultam retratos fragmentários, complexos e multifacetados. Intervêm ainda as esposas, as amantes, os filhos, as amigas das esposas, as cunhadas, as amigas das amigas. Uma galeria que compõe a trama e os retratos, sem que nenhum seja definitivo. 

O fluxo narrativo, o ritmo das frases, a linguagem genuinamente carioca, com expressões idiomáticas e a liberdade criativa - literária e linguística - que os grandes autores brasileiros cultivam e que aprendi a apreciar estão lá. Dou-vos um exemplo, a palavra "quitinete" - têm de ler com pronúncia brasileira para perceberem que é kitchenette. O livro é, no seu conjunto, de uma riqueza literária, estética, narrativa, humana e filosófica como é raro encontrar-se.

Vão por mim, se já se cruzaram com este livro, se ficaram interessados, não hesitem. Vale mesmo muito a pena. Quanto a mim, já tenho na lista de desejos o outro livro da autora. Fiquei mesmo convencida. Além disso, não sendo um livro extenso, prende tanto que, assim que o comecei, não consegui parar, recordando-me o verso de Álvaro de Campos que diz mais ou menos isto "pão sem tempo de manteiga nos dentes" - não o devorei, engoli-o num trago. Sou uma esbanjadora. Preciso de arranjar outro livro assim rapidamente.

P.S. Os livros que se sucederam este fim de semana têm entre si uma relação, casual, mas interessante. O primeiro, Uma vida inteira, narra uma vida mais ou menos por ordem cronológica, este Fim centra-se no fim da vida e a narrativa é em retrospetiva, seguir-se-á Lincoln no Bardo (que já comecei) cujas personagens se encontram no "bardo" em não tempo nem espaço imediatamente após a morte. "E esta, hein?"

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